Um Juiz Anormal: a Insanidade da Justiça Angolana

Enquanto o poder político mostra sinais de mudança, o poder judicial em Angola manifesta-se cada vez mais alheio ao respeito pela lei e pelos direitos humanos, promovendo as suas violações.

Tal é a prestação infame do juiz António Francisco, da 13.ª Secção dos Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, no Kilamba Kiaxi, no caso do rapto simulado de um pastor da Igreja Adventista do Sétimo Dia.

A 29 de Dezembro passado, este juiz, ao arrepio das normas elementares do direito, condenou seis dirigentes e membros da igreja por um crime que nunca aconteceu. O juiz fez a leitura da sentença sem ter dado resposta aos quesitos, como é de lei, para dar como provadas ou não as acusações. O Ministério Público pediu a absolvição dos arguidos por falta de provas.

António Francisco condenou o secretário executivo da União Nordeste (a segunda figura da hierarquia da igreja), pastor Teixeira Vinte, a cinco anos e um mês de prisão.

O director de departamento das Missões, Adão Hebo, e os membros da igreja Garcia Dala e João Alfredo Dala (não há qualquer relação de parentesco entre ambos) foram condenados a penas de quatro anos e três meses de prisão. Por sua vez, os missionários africanos, Burns Musa Sibanda (Zâmbia) e Passmore Hachalinga (Zimbabué) receberam penas de três anos e seis meses.

Para se ter noção do comportamento anormal do juiz António Francisco, sobretudo depois da leitura da sentença – à qual não permitiu o acesso pelos advogados dos arguidos –, convém revisitar a simulação do rapto.

 

A simulação do rapto

O então presidente da região norte (coordenação de sete províncias), pastor Daniel Cem, congeminou o seu próprio, rapto conforme revelado pelo Maka Angola. Como o enredo não tinha pés nem cabeça, socorreu-se do chefe do Departamento de Operações e do director provincial adjunto do Serviço de Investigação Criminal, respectivamente Fernando Receado e Ngola Kina.

De forma selvática e cúmplice, estes três homens, juntamente com outros assistentes, torturaram o membro da igreja João Dala, na 48.ª Esquadra em Viana, para lhe imputar a autoria do rapto – que nunca aconteceu –, obrigando-o a confessar e a implicar os restantes pastores visados.

Os mesmos homens, em conluio, também torturaram Garcia Dala, “para eu confessar que conhecia o João Dala e que lhe tinha entregado dois milhões e quinhentos kwanzas para sequestrar o pastor [Daniel Cem]. Nessa altura, eu nem sequer conhecia o João Dala, não sabia quem ele era”. Mais grave ainda, João Dala encontrava-se na fronteira do Luvo, na província do Zaire, a fazer negócios no dia do suposto rapto.

Garcia Dala foi submetido à tortura do “avião”: “Eu disse aos meus torturadores que me podia fazer tudo e matar-me, mas eu não conhecia o João Dala. Perguntaram-me se eu não conhecia um músico famoso da igreja (o João). Respondi que Luanda tem mais de 150 igrejas e cada uma delas tem os seus músicos. Era normal não conhecer um músico.”

Como o Maka Angola já reportou, o ardil de Daniel Cem foi de tal modo tosco, que a participação sobre o seu sequestro foi comunicada à polícia às 7h00, 12 horas antes de o mesmo ter supostamente acontecido, às 19h00 de 29 de Outubro de 2015.

Garcia Dala denuncia que só dois dias depois de terem sido detidos e torturados é que lhes emitiram os necessários mandados de captura, os quais foram forçados a assinar. Tendo enfrentado este infortúnio em comum, os dois Dalas acabaram por forjar uma relação fraterna: Garcia tornou-se “enfermeiro” e tratou dos ferimentos de João, quando foram colocados na mesma cela, na Comarca de Viana.

Os próprio torturadores fotografaram os seus crimes. Aqui, vê-se o tijolo que prenderam ao pénis de João Dala, deixando-o a sangrar profusamente.

 

Guarda-roupa igual a casa de banho

O caso demonstra o estado de insanidade do sistema judicial em Angola. Inicialmente, em tribunal, Daniel Cem reiterou que passou os três dias de “sequestro” numa casa de banho imunda muito apertada e sem ventilação, na casa de João Dala. Durante a reconstituição dos factos realizada pelo juiz na referida casa, não foi encontrada nenhuma casa de banho como a descrita pelo ofendido. Daniel Cem, sempre criativo, mudou então a sua declaração e afirmou que passou os três dias de “sequestro” encafuado num guarda-roupa sem fechadura, com as bonecas das meninas de 6 e 7 anos que ali moram. Na leitura do acórdão, o juiz destacou que Daniel Cem ouvia as vozes das crianças.

 

A detenção dos pastores estrangeiros

Chega-se, então, à última sessão de julgamento do caso, na manhã do dia 29 de Dezembro de 2017, o dia da leitura da sentença, depois de mais de 15 sessões.

Nesse dia, os missionários africanos Burns Musa Sibanda (Zâmbia) e Passmore Hachalinga (Zimbabué), foram inopinadamente confrontados com mandados de captura à porta do tribunal, quando se dirigiam à sala de audiências para ouvirem a leitura da sentença, como arguidos no caso. O juiz decretou a prisão preventiva de ambos, e estes acabaram por entrar na sala de audiências algemados.

Aí, depois de interpelado e face à surpresa do Ministério Público, que aparentemente desconhecia aquelas detenções, o juiz António Francisco justificou a prisão preventiva destes dois pastores estrangeiros, referindo que os dois tinham violado duas medidas coactivas, designadamente a caução a que estavam sujeitos e a interdição

Ora, segundo alega o advogado dos arguidos Burns Sibanda e Passmore Hachalinga, Vicente Pongolola, estes não estavam sujeitos a qualquer medida de coacção gravosa.

Os missionários africanos só vinham acusados e pronunciados por crime de difamação e calúnia (apesar de ambos necessitarem de tradutores para comunicarem com os outros membros da igreja), como co-autores de uma carta anónima, em português, que circulou entre os membros da igreja. A carta anónima em referência, que circulou no seio da hierarquia da igreja, denunciava Daniel Cem como tendo simulado o seu próprio rapto.

Consequentemente, o advogado requereu junto do Tribunal Supremo um habeas corpus a favor dos arguidos. Espera-se que tal iniciativa clarifique a situação, embora a experiência também tenha vindo a demonstrar que o Tribunal Supremo costuma ser demasiado lento e ambíguo na resposta a estas providências, que deveriam ser decididas muito rapidamente.

 

A anormalidade do juiz

Como é de lei, o juiz tinha de ler antes os quesitos, as perguntas e respostas que dão como provado ou não o rol de acusações.

Parente a insistência dos advogados para a leitura dos quesitos ou a consignação sobre a sua recusa, o juiz não se fez rogado: “Os quesitos não se publicam. Faça isso nas suas alegações. Por favor, não me ensine a lei processual. Não insista, senão vou retirar o vosso recurso e os vossos réus irão para a cadeia. Se não assinam, não admito o recurso e os réus vão para a cadeia.”

O juiz acusou os advogados de defesa de estarem a fomentar intrigas e acabou a ralhar-lhes. Insistiu no seu poder de mandar os réus para a cadeia e de recusar o recurso, porque estes exigem o cumprimento da lei. “Quem muito se perfuma cheira mal”, asseverou António Francisco.

“Teve de haver gritaria na sala de audiências para o juiz aceitar o recurso. Não queria fazê-lo”, diz o arguido Garcia Dala. Mesmo assim, o juiz continua a reter  o processo,  relutante em mandá-lo para o Tribunal Supremo.

Ademais, o juiz decidiu “engavetar o processo no seu gabinete, para que os advogados de defesa não tivessem acesso ao acórdão e, com essa artimanha, julgar o recurso como deserto. Não tivemos acesso ao processo. Isso é inqualificável”, lamenta um dos advogados que prefere não ser identificado. Como alternativa, os advogados tiveram de preparar as alegações de recurso com base nas notas que tiraram durante a leitura do acórdão.

De forma expedita, os advogados fizeram uma participação ao Conselho Superior da Magistratura, “pela forma parcial como o juiz actuou e por ter feito de advogado da acusação”.

 

Conclusão

O problema de qualquer cidadão quando cai nas malhas da justiça angolana não é o de temer a aplicação da lei. O que os cidadãos temem é que não seja aplicada a lei, mas sim a vontade do juiz. Diariamente, somos confrontados com decisões dos juízes “porque sim”, sem qualquer fundamentação constitucional ou legal. Os juízes têm de perceber que enquanto não respeitarem a lei nem a aplicarem devida e criteriosamente, o país não anda para frente. Não passa de uma República das Bananas.

Temos um juiz, António Francisco, que é um perigo para a sociedade e um atentado ao Estado de Direito Democrático.

É tempo de exigir aos juízes a correcta aplicação da justiça.

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