As Finanças Obscuras de Isabel dos Santos em Portugal

A análise que temos vindo a fazer dos registos públicos das contas das empresas de Isabel dos Santos levanta sempre tantas dúvidas, que nos sentimos como aqueles estupefactos estudantes de Física que olham para os “buracos negros” do universo, regiões do espaço-tempo cósmico que exibem tão fortes efeitos gravitacionais, que nada – nem mesmo partículas e radiações electromagnéticas como a luz – pode escapar de dentro deles.

As empresas de Isabel apresentam as mesmas características de inexplicável obscuridade, quer do ponto de vista do financiamento, quer na geração de resultados.

Analisemos hoje as contas da Kento Holding Limited referentes a 31 de Dezembro de 2016, mas que só foram registadas publicamente a 20 de Outubro de 2017.

Esta empresa, Kento Holding Limited, tem sede em Malta. Ter sede em Malta não é um acto inocente. Começa-se a perceber que Malta se tornou um dos paraísos fiscais para lavagem de dinheiro e demais tarefas associadas à alta criminalidade, aos chamados “crimes de colarinho branco”. Basta relembrar o recente assassínio da jornalista Daphne Caruana Galizia, cujo trabalho vinha denunciando esquemas de corrupção, para perceber o que se está a passar neste momento nesse país. Já sabemos, e o Maka Angola denunciou-o várias vezes, que Malta é um dos paraísos fiscais preferidos de Isabel dos Santos.

Ora, a Kento Holding Limited é uma empresa através da qual Isabel dos Santos controla outras empresas, em Portugal e em Moçambique.

No universo controlado pela Kento, ocupa lugar de destaque a NOS, empresa de telecomunicações de Portugal. A NOS é descrita como uma empresa portuguesa dedicada à comunicação, em que têm relevo a comunicação por satélite, um operador de cabo e ISP, um operador de telemóveis, um distribuidor de filmes (NOS Audiovisuais) e um operador virtual de serviços móveis. Os serviços oferecidos incluem televisão por cabo, internet por cabo e VOIP. A NOS produz para vários canais premium, nomeadamente a Sport TV (joint-venture com a ControlInveste) e a TV Cine. A NOS Audiovisuais (antiga ZON Lusomundo) é também o distribuidor home video no mercado português dos lançamentos da Walt Disney Pictures, Warner Bros., DreamWorks e Paramount Pictures, bem como do lançamento de vários títulos independentes e europeus.

Em resumo, a Kento é a empresa que assegura a Isabel dos Santos o controlo da NOS em Portugal.

Em Dezembro de 2016, a Kento reportou um lucro de pouco mais de um milhão de euros (€1 049 320), que resulta essencialmente da participação na NOS. Na mesma data, os activos líquidos da Kento eram de cerca de 15 milhões de euros (€15 816 125) [cfr. p. 2 do relatório].

No entanto, é assustadora a sua dívida a accionistas: mais de 120 milhões de euros (€120 324 554) [ver nota 15 das Demonstrações Financeiras, pp. 47-48].

Portanto, a conclusão acaba por ser simples. A Kento não existe. É um veículo através do qual Isabel dos Santos colocou dinheiro na NOS e de onde o receberá de volta. Apenas esconde as origens dos fundos. Em Portugal, os reguladores de mercado podem dizer hipocritamente que a Kento, empresa maltesa, logo da União Europeia, é a origem dos fundos dos investimentos de Isabel dos Santos na NOS. Contudo, basta ir à Kento para se perceber que esta não tem fundos e que recebeu financiamentos com origem não identificada dos seus sócios. E ainda que esses financiamentos são dez vezes superiores aos seus activos, e cem vezes superiores ao seu lucro. Este é o primeiro aspecto bizarro das contas da Kento: a sua principal actividade é dever ao accionista.

Note-se que como director da empresa surge o português Mário Leite da Silva, presidente do conselho de administração do Banco de Fomento de Angola (que pertence a Isabel dos Santos), e que agora é apresentado e contestado como o PCA “de facto” da Sonangol .

Um segundo aspecto obscuro das contas refere-se a um suposto crédito daquilo que é eufemisticamente chamado “a related part, which is located in a country that experiences significative delays in the execution of overseas payments”. Isto é, surge uma parte relacionada, situada num país que demora muito a pagar ao estrangeiro (Angola?) e que deverá à Kento mais de 80 milhões de euros (€83 427 860). Tal está exposto na Nota 8 das Demonstrações Financeiras (p. 42). Basta que este devedor não pague para dar origem à insolvência da empresa.

O que se infere das contas desta empresa, sobretudo se considerarmos que ela é um dos vários veículos utilizados por Isabel dos Santos para assegurar os seus vastos interesses, particularmente em Portugal, é que são uma enorme trapalhice.

Se reparamos bem, há um caminho de entrada e de saída para os dinheiros e movimentos que Isabel pretenda fazer sem qualquer ligação ao comércio normal da empresa. Esses canais são o empréstimo de sócios e o devedor angolano, identificados respectivamente nas Notas 15 e 8 das Demonstrações Financeiras. E destes dois, que possivelmente serão a mesma pessoa, dependerá a saúde da empresa, a solvabilidade dos seus compromissos e todo o movimento associado.

Mas a existência dessas duas entidades contabilísticas é “o gato escondido com rabo de fora” de Isabel dos Santos. Por aqui, qualquer investigador percebe que entram e saem os dinheiros que se quiser na ordem das centenas de milhões de euros, sem qualquer controlo. Veja-se bem: é uma empresa que tem um milhão de euros de lucros, com movimentos ligados a Angola superiores a cem milhões. Quem já participou num conselho de administração sem estar a dormir percebe facilmente que não há qualquer coerência financeira nestas contas. Apenas modelos de circularização financeira.

É evidente que as autoridades europeias (e portuguesas e maltesas) deviam investigar os movimentos financeiros que ocorrem dentro do seu território com empresas formalmente europeias, mas manifestamente detidas por interesses que ultrapassam as suas fronteiras.

 

Comentários