Julgamento Bizarro no Quintal da Administração do Cuango

A administração municipal do Cuango, província da Lunda-Norte, procedeu hoje, no quintal da sua instituição (debaixo de uma frondosa mangueira), ao julgamento sumário de 52 indivíduos detidos na manifestação de sábado passado, organizada pelo Movimento do Protectorado Lunda-Tchokwé, em Cafunfo e na vila do Luzamba.

Os réus, incluindo nove mulheres, foram condenados a 45 dias de prisão e multa de 20 mil kwanzas. Segundo o juiz Venancio Samuel Mukuiza, os condenados que procederem ao pagamento da multa ficarão com pena suspensa e serão imediatamente libertados. No entanto, a maioria dos condenados é extremamente pobre, incapaz de pagar tal quantia, e portanto, segundo testemunho do activista Alexandre Narciso, que assistiu ao julgamento do lado de fora do quintal, foram reconduzidos à cela.

De acordo com Alexandre Narciso, o juiz “referiu que, por a manifestação ter sido pacífica, abre uma excepção para os condenados serem libertados mediante o pagamento dos 20 mil kwanzas e mais dois mil cada para o defensor oficioso. Quem paga sai, quem não tiver dinheiro mantém-se na cadeia”.

“O que fazia de juiz disse que o Estado angolano não permite a independência, autonomia ou divisão, porque Angola é una e indivisível.”

Contactado por Maka Angola, o procurador municipal do Cuango, Pedro Ribeiro, limitou-se a confirmar que o julgamento foi presidido por um juiz do Tribunal Provincial da Lunda-Norte, proveniente do Dundo. O município do Cuango não tem tribunal. O procurador não retornou as chamadas para outros esclarecimentos, tendo justificado, uma vez, a má conexão das chamadas telefónicas.

A administradora municipal do Cuango, Angélica Umba Chassango, também não retornou as chamadas.

Entretanto, Maka Angola contactou um juiz que, sob anonimato, explicou o seguinte: “Se determinada localidade não tem tribunal (instalações), em regra, as pessoas que infringiram a lei devem ser transladadas para a localidade do tribunal mais próximo. Ademais, os intervenientes no acto de julgamento devem ser devidamente identificados aos demais, designadamente, durante a leitura do acórdão (sentença), sob pena de nulidade do acto, podendo ser arguido por qualquer pessoa.”

Ainda de acordo com o mesmo juiz, “o procurador deveria ter sido o primeiro a arguir a nulidade do acto. Se a manifestação foi pacífica, qual foi o fundamento da detenção e, consequentemente, da realização do julgamento? Sinceramente, eu também não entendo a razão de ser dessa actuação”.

Do ponto de vista do analista jurídico Rui Verde, “este não é um julgamento normal e constitucional. No caso, temos um mero teatro legal, sem base jurídica, e que infelizmente demonstra o estado deplorável em que se encontra a justiça angolana. Isto não é aplicação da lei, mas sim da força bruta. Não se fazem julgamentos em quintais sem contraditório. Está tudo errado”.

O analista comenta também o facto de o julgamento ter sido organizado pela administração municipal do Cuango, cuja administradora é a primeira secretária municipal do MPLA, no seu quintal. “O poder judicial tem que ser independente e imparcial, sem qualquer interferência do poder executivo e partidário”, ressalta Rui Verde.

Por sua vez, o soba do Luzamba, de seu nome João Canhica, que foi o primeiro a ser detido, em sua casa e na madrugada de 23 de Junho, um dia antes da manifestação, relata o calvário a que foi submetido:

“No dia 23, a polícia cercou a minha casa de madrugada e deteve-me no Comando Municipal do Cuango. Perguntei que crime cometi, se não estava na manifestação, que seria no dia seguinte. Nesse dia não me tocaram e disseram-me apenas: ‘Você é do Protectorado’.”

E prossegue: “No dia 24, quando trouxeram os outros detidos, levaram-nos para o quintal, onde nos torturaram como se fôssemos animais, na presença do comandante Tchilóia [chefe de operações e comandante da 1.ª Esquadra] e do comandante da Polícia de Intervenção Rápida. Bateram-me com coronhadas de AK pelo corpo todo. Nem dava para contar. Aquilo é bater confome se mata um bicho, uma cobra. Alguns colegas acabaram com os braços partidos.”

A 27 de Junho, o soba foi ouvido pelo procurador municipal Pedro Ribeiro.

“Eu disse ao procurador que sou do Protectorado, que nós aqui queremos autonomia. Nos outros países, os donos da terra beneficiam das suas riquezas. Aqui nas Lundas não conhecemos nada de bom que o governo faz para o bem das pessoas”, reafirma o soba.

“Aqui [Cuango] o hospital não tem medicamentos, até seringa tem de se comprar fora. As estradas não têm asfalto. Não há água canalizada, não há energia eléctrica, mas temos muitos diamantes”, continua.

Segundo o soba, o procurador disse-lhe apenas “que me daria a soltura para ir para casa. Não me disse mais nada”.

Trata-se do mesmo procurador que, no dia 28 de Junho, tomou uma decisão ilustrativa da baderna actual do sistema judicial em Angola. Senão vejamos:

Longue Oliveira Abel, de 23 anos, foi ter com o procurador para saber o motivo da detenção do seu pai, o camponês Oliveira Ngunza, no dia anterior, quando se encontrava a descansar em casa, na vila de Cafunfo. Tratava-se da disputa pacífica de um terreno agrícola actualmente usado pela comunidade local para a pastorícia do seu gado.

“Perguntei ao procurador como estavam a resolver o caso e porque prendem o papá sem ouvi-lo, e como se faz um processo sem ouvir as duas partes? Será que estão a ser pagos? Perguntei ao procurador”, revela a jovem.

“O procurador não me respondeu. Mandou meter-me na cadeia. Fiquei detida das 9h00 às 18h00. O papá continua preso. Ele não lutou, não fez nada de errado. O procurador disse que, para ele ser libertado, tem de tirar primeiro os bois do terreno, senão continuará preso. Que justiça é essa?”

Casos como estes – e muitos mais haverá – são provas irrefutáveis de que a justiça em Angola não só não evolui como regride a cada dia, na direcção de um sistema neo-medieval que trata as pessoas como coisas, com total desrespeito pelas leis e pelo bom senso.

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