As Trapalhices da CNE, a Insolvência da SINFIC e as Eleições

A CNE (Comissão Nacional Eleitoral) é o órgão fundamental para assegurar a autenticidade das eleições angolanas. E sem autenticidade não existe legitimidade. Ou, dito de outro modo, se as eleições não são verdadeiras, quem ganha não tem o direito a governar, e é tudo uma farsa.

No processo eleitoral em curso que culminará no sufrágio de Agosto de 2017, existe, neste momento, um problema de autenticidade eleitoral, no que diz respeito à credibilidade. Isto é, mesmo que a preparação das eleições esteja a decorrer de forma correcta, a percepção das pessoas é que tal não acontece, lançando a suspeita sobre as actividades da CNE. Ora, isto é muito negativo para a possibilidade de eleições livres e justas.

A CNE tem que deixar de ser um mini-parlamento, onde o MPLA manda, ou uma mera correia de transmissão do poder do palácio presidencial, e dar passos no sentido de convencer a população da sua independência.

Um dos problemas que surgiram, entre outros, foi a contratação de uma empresa para colaborar tecnicamente no processo eleitoral. Essa empresa chama-se Sinfic, e será portuguesa. Recentemente, Júlia Ferreira, porta-voz da CNE, veio a público afirmar que a lei está a ser cumprida, uma vez que a “CNE procurou encontrar o equilíbrio entre o estabelecido pela Lei dos Concursos Públicos e a Lei Orgânica sobre as Eleições Gerais, tendo o cuidado de respeitar todas as questões de aspecto técnico”, acrescentando que “a CNE procurou buscar ‘consensos’ e ‘equilíbrios’ na apreciação aos cadernos de encargos, uma peça importante dos concursos públicos”, levando “várias vezes à reapreciação do plenário da CNE”.

Com todo o respeito pela senhora, na aplicação da lei não estamos a falar de equilíbrios entre leis. As leis não são uma espécie de ementas de restaurante de onde escolhemos uma sopa de tomate para conjugar com uma salada e um frango grelhado, obtendo no fim um equilíbrio entre os nutrientes. As leis são regras obrigatórias que têm de ser aplicadas. Obviamente que a aplicação exige muitas vezes a interpretação da norma, mas não permite, sobretudo em casos como o do direito eleitoral, a flexibilização das normas.

A CNE não apresenta qualquer excepção naquilo que se refere à aplicação da Lei dos Contratos Públicos, Lei n.º 9/16, de 21 de Abril. Nem se descortina qualquer especialidade referente à contratação nas normas da Lei Orgânica sobre as Eleições Gerais.

Em resumo, temos em vigor uma lei sobre a contratação pública que se aplica plenamente à CNE. Portanto, para a contratação da Sinfic, ou outros, só tem que ser seguido o estipulado nesta lei.

Obviamente que a contratação da Sinfic, agora vista não do prisma do direito administrativo dos contratos públicos, mas sim do direito constitucional e eleitoral, designadamente do princípio da credibilidade eleitoral, é extremamente duvidosa.

A Sinfic não traz qualquer credibilidade ou garantia de independência ao processo eleitoral angolano. Primeiro, porque substantivamente não é portuguesa. Portanto, a ideia de que se trata de uma entidade independente que desembarca nas costas africanas sem interesses estabelecidos é falsa. A Sinfic é basicamente angolana, o que seria uma virtude, mas não é, porque já é “velha conhecida” dos processos eleitorais. Pelo menos desde 2008, tendo sido acusada várias vezes de colaborar na adulteração de resultados a favor do MPLA. Por exemplo, em 2013 a UNITA apresentou uma participação-crime contra os administradores da empresa, por variados alegados crimes ocorridos durante o processo eleitoral. O processo foi arquivado. Vamos admitir que a empresa não tenha cometido qualquer crime ou irregularidade. Mas o problema não é esse.

O problema é que é de novo chamada uma empresa de que a oposição suspeita. Era mais transparente e claro buscar-se uma empresa de que ninguém suspeitasse e que contasse com a aprovação prévia e unânime da Comissão Nacional Eleitoral, seguindo todos os procedimentos da Lei dos Contratos Públicos.

A Sinfic tem de facto sede em Portugal, mas a sua actividade ocorre maioritariamente em Angola. Neste momento, é uma pequena empresa. Em 2015 – e é o último Relatório e Contas publicado no seu site – teve um volume de negócios de 1,6 milhões de euros. Nos anos anteriores, o volume foi mais elevado, na ordem dos 7/8 milhões. Ora, 60 a 70 por cento do seu volume de negócios é feito com Angola. Angola cresceu, a empresa cresceu. Angola desacelera, é o descalabro da empresa.

 

A própria Sinfic reconheceu, no mesmo Relatório e Contas de 2015, que “os indicadores financeiros degradaram-se significativamente” e que: “Face à perda (…) de recursos humanos provocada por esta situação e ao facto de, numa empresa com activos intelectuais, os recursos humanos serem imprescindíveis à manutenção do valor inerente aos produtos desenvolvidos, negociámos a possibilidade de, num contexto de criação de novas empresas, recorrendo naturalmente a outros investidores que não a Sinfic, os ex-colaboradores pudessem alavancar o desenvolvimento das soluções tecnológicas que caracterizavam a missão e a alma da Sinfic.”

Segundo as informações por nós obtidas no Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo de Comércio de Sintra – Juiz 1, a Sinfic foi sujeita a um PER – Processo Especial de Revitalização, que correu os seus termos no processo 21250/15.0T8SNT. O “PER” é um processo judicial especial, que se destina a permitir a qualquer devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores, de modo a concluir com estes um acordo conducente à sua revitalização económica, facultando-lhe a possibilidade de se manter activo no giro comercial”. No mesmo tribunal, consta a existência de um administrador da insolvência, de seu nome Jorge Fialho Faustino.

Em 28 de Março de 2016, foi realizado o despacho de homologação relativo ao acordo entre esta empresa e os seus credores.

Em resumo, a situação financeira da empresa esteve muito periclitante, mas no ano passado chegou a um acordo no âmbito de um processo judicial com os credores para recuperar. E deseja-se que recupere.

A dúvida é se uma empresa fragilizada deverá assumir a totalidade das tarefas que lhe estão a ser atribuídas pela CNE.

Acresce, e este é o ponto mais relevante, que não se pode dizer que uma empresa que vive essencialmente dos negócios com o governo de Angola seja uma empresa portuguesa. Tem sede em Portugal, mas a sua vida, a sua estrutura, a sua saúde são definidas em Angola. Além do mais, não é clara a composição do seu corpo accionista. Em muita imprensa, surge a insinuação de que existem capitais angolanos na empresa, designadamente de generais importantes para o regime.

Por tudo isto, não existe uma base convincente da racionalidade técnica e económica para esta contratação.

E a solução para este problema, como para outros que atravessa a CNE, é despartidarizá-la. A CNE tem que ser maioritariamente composta por membros neutros e imparciais, provenientes da sociedade civil.

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