O Problema da Legitimidade do Mandato Presidencial

Este texto defende que a legitimidade democrática do mandato presidencial de José Eduardo dos Santos é muito duvidosa, e que as atribuições e funções que a Constituição de 2010 atribui ao actual presidente da República, face ao seu modo de eleição, criam um grave desequilíbrio, tornando-o um ditador eleito plebiscitado indirectamente. Das duas uma: ou se passa a eleger directamente o presidente ou se diminuem os seus poderes.

José Eduardo dos Santos foi designado como presidente da República Popular de Angola (assim se chamava o país então) no dia 21 de Setembro de 1979. Agia como tal desde 10 de Setembro de 1979. As biografias oficiais que por aí andam apenas dizem que ele foi “eleito” presidente. Não dizem como. Da mesma maneira, as “Histórias de Angola” mais recentes e populares, como a de Alberto Oliveira Pinto ou a de Douglas Wheeler e René Pélissier, evitam o tema.

Na realidade, a nomeação de José Eduardo dos Santos em 1979 seguiu o disposto na chamada Lei Constitucional da República de Angola de 1975, documento cuja legitimidade advém de uma aclamação (não de qualquer voto secreto ou livre) do Comité Central do MPLA, realizado em 10 de Novembro de 1975. O presidente da República era simultaneamente chefe de Estado, presidente do Conselho da Revolução e presidente do MPLA.

O processo de transição presidencial estava regulado no seu artigo 33.º, que dispunha, na versão revista da Lei Constitucional de 7 de Janeiro de 1978: “No caso de morte, renúncia ou impedimento permanente do Presidente da República, o Bureau Político do Comité Central do MPLA-Partido do Trabalho designará de entre os seus membros quem exerça provisoriamente o cargo de Presidente da República.”

Historicamente, o que se passou é que o Comité Central do MPLA nomeu José Eduardo dos Santos como presidente do MPLA, e daí ele foi alcandorado automaticamente à presidência da República Popular de Angola. Portanto, a designação de José Eduardo dos Santos em 1979 não resultou de qualquer legitimidade popular ou democrática. Resultou da legitimidade revolucionária e da decisão de um pequeno grupo de líderes partidários. Digamos que foi escolhido por uma dúzia de pares.

Todo este mecanismo teve origem na necessidade revolucionária e na imposição da força. Não se discute a sua legitimidade efectiva na época. Mas bem se vê que seria sempre uma solução provisória, durável apenas enquanto não se “normalizassem” e formalizassem as estruturas do Estado.

Após essa nomeação, em 1979, não houve mais acto nenhum de legitimação da presidência de José Eduardo dos Santos até 1991/1992. Aí, na sequência dos chamados Acordos de Bicesse, foi gizada nova legislação constitucional que alterava formalmente o modelo de Estado. Foi abandonada a organização marxista e comunista, introduzindo-se um modelo democrático pluripartidário, em que a legitimidade assenta em eleições livres e justas. As fábulas comunistas de que o MPLA representa o povo e tudo pode decidir por ele são abandonadas em termos de letra da lei.

Preparam-se eleições para Setembro de 1992. A história subsequente é conhecida, mas transcreve-se aquilo que a Embaixada de Angola na Áustria, Croácia, Eslovénia e Eslováquia refere no seu sítio: “nas eleições presidenciais José Eduardo dos Santos não foi eleito na primeira volta, tendo conseguido somente 49% dos votos, contra 40% de Jonas Savimbi. De acordo com a constituição vigente, uma segunda volta teria sido indispensável, [o que não aconteceu]. Deste modo, José Eduardo dos Santos manteve-se em funções, mesmo sem legitimidade constitucional.” Ou seja, o próprio regime reconhece a falta de legitimidade de José Eduardo dos Santos. Sobre as razões que levaram à inexistência da segunda volta, está difundida a ideia errada de que esse facto se deveu à recusa de Jonas Savimbi em reconhecer os resultados, e que tal atitude teria “obrigado” José Eduardo dos Santos a permanecer no poder sem legitimidade para tal. Ora, as provas documentais contam outra história. O Jornal de Angola, na sua edição de 17 de Outubro de 1992, informa que Jonas Savimbi falou à imprensa na altura e anunciou a sua decisão de aceitar os resultados das eleições, embora considerasse que o escrutínio não decorrera de forma transparente. Savimbi terá inclusivamente escrito à ONU a confirmar a sua aceitação.

Como quer que seja, o certo é que o segundo momento de legitimação democrática de José Eduardo dos Santos… não existe. Ele continua presidente numa suposta democracia, em virtude de ter sido eleito há vários anos numa ditadura comunista pelos seus pares de partido. É no mínimo bizarro.

A guerra civil que se reacende só termina em 2002, e no seu decurso não mais foi colocada a questão presidencial. Ou seja, entre 1979 e 2002 a questão presidencial foi colocada duas vezes, mas apenas uma vez teve alguma manifestação de vontade conclusiva: em 1979. E a origem dessa vontade não foi popular, chegando meramente de uma mão-cheia de membros do MPLA.

Em 2008, voltam apenas a realizar-se eleições, mas apenas para o poder legislativo. O MPLA ganha essas eleições com mais de 4/5 dos votos. Face a estes resultados, o MPLA delibera que a Assembleia assuma poderes constitucionais, entendendo que tal resultava da interpretação da Lei Constitucional de 1992.

A Constituição atípica

Votação de mãos ao ar na Assembleia Nacional. com o sim da primeira-dama e deputada Ana Paula dos Santos.

Votação de mãos ao ar na AN, com o sim da primeira-dama e deputada Ana Paula.

Daqui resulta a Constituição de 2010. Esta Constituição “abandona, por um lado o princípio democrático fundamental da divisão entre os poderes legislativo, executivo e judiciário, concentrando os poderes efectivos no Presidente. Por outro lado, esta constituição já não prevê eleições presidenciais, mas um mecanismo pelo qual o Presidente do partido mais votado se torna Presidente do Estado” (transcrição da informação oficial prestada pelo site da Embaixada de Angola na Áustria, Croácia, Eslováquia e Eslovénia).

Jorge Miranda, “pai” da Constituição portuguesa e professor de vários e distintos juristas angolanos, é claro quando escreve: “O sistema [da Constituição angolana] aproxima-se, sim, do sistema de governo representativo simples, a que, configurações diversas, se reconduziram a monarquia cesarista francesa de Bonaparte, a república corporativa de Salazar segundo a Constituição de 1933, o governo militar brasileiro segundo a Constituição de 1967-1969, vários regimes autoritários africanos.”

Dito de outro modo, esta Constituição consagra em Angola um ditador eleito indirectamente.

Muitos argumentam que o sistema actual de escolha do presidente da República em Angola – o primeiro candidato das listas do partido mais votado nas eleições gerais – é semelhante ao sistema sul-africano.

A Constituição sul-africana, prescreve no seu artigo 86.º, que o Parlamento, após a sua eleição e se o lugar estiver vago, elege de entre os seus membros o presidente da República. O presidente é eleito pelo Parlamento. De alguma forma, há semelhanças com o sistema angolano. Contudo, a questão é que os poderes do presidente sul-africano não se comparam aos poderes do congénere angolano. Num caso estamos a falar de um quase primeiro-ministro, sendo típico dos sistemas parlamentares a eleição desta figura pelo Parlamento. No caso angolano, e como escreve Jorge Miranda, “são substancialmente menores os poderes do presidente da África do Sul (arts. 84.º e 85.º) [face ao de Angola]; a Assembleia Nacional pode votar, pela maioria dos seus membros, moções de censura ao Presidente, determinando, por tal facto, a sua demissão (art. 102.º); o Presidente só poder dissolver o Parlamento se este assim deliberar, ou livremente, mas só passados três anos sobre a eleição do Parlamento (art. 50.º, n.º 1); e, em caso de vacatura do cargo, em vez de o vice-Presidente o assumir até ao termo do mandato, o presidente interino da República terá de dissolver o Parlamento, para permitir a eleição de um novo Presidente (art. 50.º, n.º 2)”.

O problema é que o sistema constitucional angolano não confere a necessária legitimidade democrática a um presidente da República com a amplitude de poderes que tem José Eduardo dos Santos. Só a eleição directa do mesmo conferiria tal legitimidade.

É verdade que, finalmente em 2012, José Eduardo acabou por ser eleito indirectamente pelo voto popular. Contudo, as dúvidas e perplexidades mantêm-se. Esta forma de voto não traz legitimidade ao presidente para ele fazer o que faz.

No mínimo, era exigível uma revisão constitucional para consagrar a eleição directa do presidente, ou, alternativamente, a diminuição dos seus poderes.

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