Punir os Carrascos

O polícia ata uma corda nos testículos de Flávio Carizo e puxa-a, apertando e espremendo os órgãos genitais do homem. Isabel dos Santos posa para a fotografia envergando um vestido vaporoso numa cerimónia de homenagem à actriz Sophia Loren em Nápoles, Itália. O polícia pega na muleta do perneta Bernardo Gaspar e utiliza-a para lhe bater sincopadamente, de forma selvagem. Isabel dos Santos surge airosa e colorida no Mar Mediterrâneo, perto de Barcelona, onde foi visitar o papá.

Todas estas imagens percorrem a minha mente como retratos alucinogénios de um Fellini angolano que um dia há-de surgir.

Flávio morreu da tortura. Bernardo acabou na prisão de Viana.

Isabel dos Santos brinda todos os dias a plebe com as suas fotos de alta-roda, acompanhadas por textos que parecem citações de um duvidoso livro de auto-ajuda.

De um lado, temos o trabalho árduo de alguns cidadãos angolanos, que denunciam constantemente as omissões e os atropelos da ditadura angolana.

Do outro, temos o trabalho de um marqueteiro português qualquer que acha que basta criar uma imagem de glamour, com fotografias de viagens acompanhadas de uns textos pirosos, para que Isabel dos Santos seja definitivamente considerada uma vencedora pelos seus conterrâneos. Se não fosse trágico, seria ridículo.

Bem pode a Constituição estabelecer que Angola é um Estado de Direito e proibir a tortura. Bem podem mil professores ensinar à exaustão que Angola é um Estado de Direito onde se proíbe a tortura; bem podem mil políticos discursar e afirmar que Angola é um Estado de Direito onde se proíbe a tortura.

Mas basta um texto como a Tortura e homicídio: sofrer e morrer às mãos da Polícia Nacional para desacreditar as mil e uma fotos e textos de propaganda sobre o sucesso de Isabel.

O ministro da Justiça e dos Direitos Humanos, Rui Mangueira, pode defender que o caso de tortura e assassinato de Flávio Carizo é apenas uma maçã podre que não contagia as outras, querendo com isso evocar a inefável metáfora do ex-presidente Bush a propósito da falência da Enron e das fraudes do seu amigo Kenneth Lay.

Não é esse o caso, mas se o ministro quiser provar o contrário, pode recorrer aos instrumentos jurídicos que estão à sua disposição.

A Constituição de Angola estipula, no seu artigo 36.º, a proibição absoluta da tortura. Este artigo é de aplicação directa e imediata, nos termos do artigo 28.º, n.º 1, da mesma Constituição.

Quer isto dizer que não são necessárias quaisquer outras normas, nem quaisquer conversas, para se tomar medidas. Todos os agentes do Estado têm a obrigação de investigar e punir actos de tortura.

Ao ministro não resta senão ordenar um inquérito criminal e disciplinar sobre os perpetradores dos actos de tortura e sobre os seus superiores hierárquicos.

Segundo a jurisprudência internacional, tanto é responsável pela tortura aquele que pratica os actos, como o que os ordena, ou os tolera.

A este propósito, vejam-se as condenações decretadas pelo juiz chileno Leopoldo Llanos, relativas a actos cometidos durante a ditadura de Pinochet. Diversas condenações aplicam-se àqueles que realizaram materialmente as torturas, e todas se aplicam ao seu general Manuel Contreras, chefe dos Serviços de Informação chilenos DINA. Em todos os casos julgados, Contreras foi considerado como responsável último, ou porque mandou, ou porque sabia, ou porque não fez nada para evitar os crimes dos seus subordinados, alimentando práticas recorrentes e quotidianas de tortura.

Em Angola, face ao exposto, deve ser aplicada a jurisprudência: instaurar um processo-crime e disciplinar aos agentes que praticaram os actos de tortura e o homicídio (e que estão identificados no texto acima referido), bem como aos seus superiores: o comissário Ângelo de Barros Veiga Tavares, o ministro do Interior; o comissário-chefe Ambrósio de Lemos, comandante-geral, e o comissário Eugénio Pedro Alexandre, director do SIC.

Todos eles são responsáveis pelos actos bárbaros que relatámos, e devem ser alvo de devido inquérito, para que, no mínimo, este tipo de vandalismo policial não se repita.

Não é com campanhas fotográficas no Instagram que se resolvem os problemas de Angola.

É com medidas reais, de pessoas reais, para pessoas reais.

 

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