Direito à Saúde e Crimes contra a Humanidade em Angola

Rafael Marques tem escrito no Maka Angola uma série de reportagens chocantes e impressivas sobre as atrocidades cometidas nos hospitais e que revelam a realidade assustadora do sistema público de saúde em Angola.

Uma frase vale mais do que todas as descrições: “Conto mais de 20 corpos espalhados, a serem lavados ao ar livre pelos familiares, vestidos, aprumados para o adeus final aos entes queridos. No chão, as águas não escorrem. Misturam-se com sangue, com os plásticos abandonados, luvas, máscaras, panos, roupas retiradas dos mortos. Há uma fossa entupida, com águas putrefactas, no mesmo local.”

A morte de crianças e adultos a um ritmo elevado, e a incapacidade dos hospitais, das morgues e das unidades de saúde são o pior exemplo da tragédia humanitária que assola o país.

Não estamos aqui perante um mero falhanço de políticas públicas, de incompetência governamental ou de falta de meios.

Estamos perante um dos mais graves atentados aos direitos humanos perpetrados em Angola.

A saúde também é um direito humano e fundamental, por isso os crimes contra ela são crimes contra a Humanidade. Veja o vídeo aqui.

Os direitos sociais, em que se inclui a saúde, são parte do quadro jurídico universal dos direitos humanos, segundo o qual todos os direitos são "universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados". Tal como os direitos civis e políticos, que protegem a dignidade humana, estabelecendo obrigações negativas e positivas para os Estados, os direitos sociais definem as condições mínimas necessárias para que as pessoas vivam de maneira digna, de modo a garantir aquilo a que o presidente norte-americano Franklin Roosevelt chamava a “liberdade do medo”.

Os direitos sociais estão consagrados em diversos tratados internacionais, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, ou o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, de 1966. Tanto a Declaração como o Pacto prevêm o direito à saúde e aos cuidados médicos. Vários mecanismos internacionais e regionais foram instituídos para monitorizar o cumprimento ou não dos Estados face aos direitos sociais. Nas Nações Unidas, o Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais vigia os Estados naquilo que diz respeito ao cumprimento das suas obrigações decorrentes do Pacto, e também pode ouvir queixas. Em África, temos o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos e a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.

Tem especial significado para estas considerações o Comentário Geral n.º 14 produzido pelo Conselho Económico Social das Nações Unidas, em 11 de Agosto de 2000, que define o entendimento global sobre os deveres dos Estados em matéria de saúde.

Aí considera-se que a saúde é “um direito humano fundamental indispensável para o exercício de outros direitos humanos. Todo o ser humano tem direito ao gozo do mais alto nível possível de saúde, propício para viver uma vida com dignidade.” Entre outras coisas, a norma deve ser entendida como impondo que o funcionamento de saúde pública e das instalações de cuidados de saúde, bem como os produtos, serviços e programas, estejam disponíveis em quantidade suficiente dentro de cada Estado. E, embora a natureza das instalações, dos bens e dos serviços varie de acordo com vários factores, incluindo o nível de desenvolvimento do Estado, existe, no entanto, um mínimo de determinantes subjacentes à boa saúde, tais como água potável e instalações sanitárias adequadas, hospitais, clínicas e outras infra-estruturas relacionadas com a saúde, corpo médico e profissionais de saúde recebendo salários internamente competitivos e, claro, medicamentos essenciais.

Não vale a pena prosseguir a enumeração dos aspectos legais internacionais do Direito à Saúde. O que importa é definir a sua existência e lutar para que seja considerado um direito humano fundamental.

Face a este pressuposto e perante a situação em que se encontra a saúde em Angola, as condições em que opera, as mortes que provoca, é difícil não se pensar que se está perante um acto gravemente ofensivo dos direitos humanos, e por isso susceptível de acção judicial ou quase-judicial nos Tribunais e nas Comissões Internacionais, sejam eles globais ou africanos.

O momento é, pois, de accionar nos tribunais de direitos humanos internacionais a acusação contra os responsáveis angolanos pelo presente estado da saúde no país.

 

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