A Campanha de Recolha de Feitiço e a Violência em Cafunfo

Na zona diamantífera de Cafunfo, os arrepiantes níveis de mortalidade infantil, a pobreza extrema e o recente empossamento da nova rainha Mwana Cafunfo deram origem a uma violenta campanha local de recolha de feitiço.

Centenas de pessoas acorreram às ruas, em ajuntamentos, para testemunharem a comitiva de cerca de dez quimbandeiros, acompanhados de um operador de vídeo, um fotógrafo e outros ajudantes, que adentravam pelas residências dos suspeitos de feitiçaria. Parecia um circo, animado pela nudez de alguns quimbandas, pelos rituais e por cenas de pancadaria dos supostos feiticeiros, que a seguir eram exibidos nus e postos assim a circular pelas artérias de Cafunfo, montados em motorizadas.

“As pessoas aproveitaram seguir os quimbandas [durante a campanha] para fazer manifestação. Aquilo era manifestação”, denuncia o soba Alfredo Funete, coordenador do Fórum Angolano das Autoridades Tradicionais (FAAT). A última manifestação ocorrida em Cafunfo, a 15 de Junho de 2013, contou com mais de 15 mil pessoas e obrigou, pela primeira vez, à intervenção directa de efectivos das Forças Armadas Angolanas com vista à repressão de manifestantes.

De acordo com o regedor MwaCapenda Camulemba, que superintende a Mwana Cafunfo, no passado dia 5 de Janeiro, as autoridades tradicionais de Cafunfo realizaram um encontro com a administração local para apresentar a proposta da nova rainha sobre a recolha de feitiço.

“O administrador municipal do Cuango, Luís Figueiredo Muambongue, perguntou à rainha se conseguiria recolher o feitiço. A rainha disse que sim. Ele recusou envolver-se na campanha e disse que não iria sujar o seu cadastro”, revela o soba Alfredo Funete.

“Ele deixou para as autoridades tradicionais a responsabilidade da campanha, mas [advertiu] que não devia haver violência”, continua.

Numa cerimónia tradicional, a 16 de Janeiro, Teresa Salvador, de 49 anos, foi investida com os poderes de Mwana Cafunfo.

Pouco depois do meio-dia de 17 de Janeiro, teve início a referida campanha, dirigida por uma equipa alegadamente especializada, composta por dez quimbandeiros, que se dirigiram às residências dos sobas Malanje, Mwana Kiesse, Kambanguanda, Muhoxi, Mwatxivo, Saiaco, Sakanzenze, Tito Tchibala, Diakamavo e Alfredo Funete, entre outros.

Como parte do ritual, os “adivinhadores têm de entrar nus na casa do feiticeiro, sem qualquer objecto na mão e durante o dia”, explica Pedalé Mungaumwé, cunhado do soba Malanje. “Os feiticeiros, para matarem pessoas, também fazem rituais nus, por isso o quimbanda também tem de agir nu”, continua.

Pedalé Mungaumwé denuncia que, em casa do seu cunhado, o soba Malanje, “foi encontrado um chifre com mixórdias, na mala do filho, para prejudicar a família dele”.

Para o MwaCapenda Camulemba, “o quimbandeiro tem de andar nu. É uma lógica para a dominação do feitiço”.

A 18 de Janeiro, novo grupo de cerca de dez adivinhadores, alguns nus e outros de bata branca, dirigiu-se à residência de Assa Ngunza, uma anciã com mais de 80 anos e mãe do soba Alfredo Funete, coordenador do FAAT em Cafunfo.

O activista Jordan Muacabinza revela que os adivinhadores despiram a anciã para a expurgar “o feitiço”. Ora, esta acção gerou protestos por parte dos representantes locais do MPLA, que saíram “em defesa do seu membro, o soba Alfredo, que foi fazer queixa à polícia e causou a suspensão da recolha do feitiço pelo administrador”.

Por sua vez, o soba Alfredo apresenta uma outra versão dos factos: “Os adivinhadores foram à minha casa e romperam as portas. Eu não estava. Foram à casa da minha mãe e despejaram-lhe uma bacia com água. Quando ela reclamou, despejaram-lhe outra bacia. A minha mãe perguntou-lhes [aos adivinhadores] onde estava o feitiço dela. Foi espancada com chapadas e paus. Encontraram palha-de-aço como feitiço”, informa o soba. “Os meus irmãos apresentaram queixa à polícia, porque os quimbandas e seus seguidores roubaram 80 mil kwanzas da casa da minha mãe e ainda se sentaram ali e beberam uma grade de gasosa que ela tinha e destruíram a sanita da casa de banho dela”, denuncia o soba.

Um dos membros da equipa de quimbandeiros repousa durante a campanha.
 

Feitiço no hospital

No Hospital de Cafunfo, que serve mais de 150 mil habitantes, em média, morrem diariamente várias pessoas por falta de assistência básica médico-medicamentosa. Os cinco médicos  norte-coreanos que atendem os pacientes praticamente não falam português e não têm intérpretes. Na realidade, o hospital não passa de um posto de saúde sem o mínimo de condições de trabalho e de atendimento. Todavia, é agora um dos principais focos de disputa entre os promotores da campanha de recolha de feitiço e as autoridades locais que suspenderam a iniciativa, alegadamente devido aos actos de violência.

Os promotores alegam a existência de dois tambores – de feitiço e com sangue dos mortos – escondidos no hospital e que, segundo a sua imaginação, têm transformado o hospital em morgue para a maioria dos pacientes que dão entrada.

“As autoridades locais impediram a remoção desse feitiço do hospital, que é o mais poderoso e está a matar muita gente”, lamenta Pedalé Mungaumwé.

Outro exemplo curioso tem que ver com o aumento do número de acidentes de motociclistas, numa vila onde não há estradas asfaltadas e onde as regras de trânsito são desconhecidas e/ou ignoradas.

“Um polícia do feitiço, que foi retirado do Bairro do Tanque, facilita para que os acidentados de motorizada morram imediatamente. Desde que [os quimbandas] lhe neutralizaram, há uma redução de mortes”, anuncia Jordan Muacabinza.

"Eu ouvi falar no assunto, nunca vi os tais tambores, devem ser mágicos. Eu não acredito em feitiço", afirma um funcionário do hospital.

Feitiço no ventre

Tal como na política, na guerra e noutras demonstrações de poder, a dominação sexual faz parte do culto.

O activista Jordan Muacabinza refere o caso de um senhor, no Bairro do Tanque, cujo nome se omite propositadamente, a quem os adivinhos impuseram o acto sexual com a filha, de modo a “retirar o feitiço que ela tinha no ventre”.

Ao MwaCapenda Camulemba, Maka Angola pergunta sobre a prática de ter relações sexuais com mulheres supostamente portadoras de feitiço no ventre. Os homens não são portadores de feitiço no corpo? O que aconteceria se fosse um homem?

“Há pessoas que engolem o feitiço, por isso tem se ter relação com a mulher para tirar o feitiço que tem dentro de si”, responde o regedor.

Como prova de que a prática não é sexista, refere o nome de um soba e sua jurisdição, aqui propositadamente omitidos, “que tinha o feitiço na barriga e o adivinhador teve de ter relações sexuais com ele para lhe retirar as mixórdias”.

Em relação à campanha por si apoiada, diz, triunfante, que “prova de feitiço já temos. É feitiço mesmo de realidade”.

Explica-se:

“Em casa do soba Mário Kamanguanda encontrámos uma gibóia. Na do soba Muhoxi tirámos uma arma de feitiço que era acompanhada de chuva para matar pessoas. Essa arma já matou três membros da família do soba”, descreve.

“Eu pessoalmente assisti à retirada do feitiço na casa do soba Muhoxi, do soba Malanje e de um pastor da Igreja Protestante, o soba Mwana Kiesse. Os feitiços dele estão aqui comigo, eram para matar pessoas e são todos do MPLA”, anuncia.

Quanto à violência, o MwaCapenda não tem rodeios: “Se os feiticeiros desobedecem têm de levar umas chapadas, recebe-se o feitiço e são libertados. Eles não têm de pagar multa. É só para recolher o feitiço.”

Em discordância, o soba Alfredo Funete afirma que todos os sobas acusados foram obrigados a pagar 30 mil kwanzas pela sua liberdade.

Uma multidão de curiosos, incluindo crianças, aglomerada junto à casa do soba Malanje.
 

Muita porrada

O soba Alfredo Funete lembra-se da campanha de recolha de feitiço realizada, em 1983-84, pelo soba Mwana Caibo, um quimbanda de grande fama, “que recolheu muito feitiço aqui sem dar porrada a ninguém”.

Para si, “o que aconteceu desta vez foi uma grande falta de respeito. Andaram nus em motorizadas pela vila”.

Para além da sua mãe, abalada pelos maus-tratos que lhe foram inflingidos, o soba Alfredo relata outros casos de violência contra colegas seus e um “inocente”.

“Foram ao soba Mário Kamanguanda, deixaram-no nu em pêlo, todas as crianças viram o mais velho nu, meteram-lhe assim numa motorizada e passearam com ele. Levou muita porrada. Está acamado, não consegue andar.” Outrossim, o soba Alfredo denuncia ainda que os quimbandeiros e seus seguidores “levaram duas motorizadas do soba e despejaram-lhe um líquido na cara. Agora, ele mal consegue ver”.

“O soba Alberto Alfeu foi deixado nu em pêlo, levou muita porrada, também o puseram numa motorizada, passearam-no nu e levaram-no à rainha, que condenou o acto. O soba está acamado e não consegue andar”, relata.

Em casa do soba Sakanzenze, de cerca de 70 anos, o soba Alfredo Funete conta que um dos quimbandas “meteu-lhe um chifre na cama para o acusar. Levaram-no à presença da rainha, que rejeitou a acção contra o mais-velho e mandou-o para casa”.

“O soba Araújo Camoio levou muita porrada, mudaram-lhe a roupa, foi passeado nu, mas já está a andar”, prossegue.

“O Faustino Tchikama era um inocente que estava a passar na rua, quando viu os sobas a serem exibidos nus, reclamou contra a violência e partiram-lhe a cabeça com uma garrafa”, enfatiza.

Apesar desses casos todos de violência, o soba Alfredo sublinha a suposta neutralidade dos efectivos da Polícia Nacional. “Por ser uma questão de feitiço, a polícia disse que não poderia envolver-se, mesmo com violência, e não fez nada.”

“Quem suspendeu a campanha foi o administrador Figueiredo Muambongue. Ele disse que o feitiço deve ser recolhido com respeito e sem castigar as pessoas. É uma violação da lei dar porrada e despir a roupa das pessoas”, reafirma o soba Alfredo Funete.

“Os que estão a dirigir essa confusão dizem que sou do MPLA. Não. A rainha está acima de mim e são ordens dela para a recolha do feitiço, mas com respeito. A questão aqui é o respeito”, enfatiza o soba.

A política da feitiçaria e o MPLA

A Rainha Mwana Cafunfo, na imagem, quer combater o feitiço na área sob sua jurisdição.

Há uma grande animosidade entre sobas e comunidades locais. Por um lado, há os sobas ligados ao MPLA, vistos como beneficiários de supostos privilégios, ilegítimos e apodados de informadores do regime que oprime as comunidades locais. Por outro, estão os sobas ligados à oposição, ou simplesmente dedicados às suas comunidades, tidos como legítimos, mas apodados de sectários, confusionistas e prejudiciais às suas comunidades, por estarem apartados das autoridades governamentais.

Um dos mais visados é o soba Alfredo Funete que, após a morte da anterior rainha Mwana Cafunfo, há sete anos, acumulava as suas funções, assim se mantendo até à investidura da nova soberana. É da responsabilidade do soba Funete o pagamento dos subsídios mensais que o governo atribui às autoridades tradicionais locais, bem como o seu controlo oficial.

Em defesa da campanha, o MwaCapenda Camulemba afirma que os sobas reclamantes “são todos do comité do MPLA. É no comité que estão a maioria dos feiticeiros, por isso o MPLA está a protestar e o seu administrador mandou suspender a campanha”.

“O Kamanguanda é soba do MPLA. O Muhoxi era quimbandeiro que se tornou soba depois de se meter no MPLA. Por isso, são sobas que não têm bairro.”

Como prova do sucesso da sua campanha, o regedor revela: “Recebemos um convite do município de Calonda para realizarmos o mesmo trabalho, mas só lá iremos quando acabarmos aqui em Cafunfo.”

Fala ainda sobre supostos convites feitos por dirigentes, em Luanda, à Mwana Cafunfo, para ela enviar a sua equipa antifeitiço à capital, com vista à limpeza dos gabinetes dos proponentes, para alegadamente se libertarem do peso das mixórdias dos seus antecessores, colegas e oponentes.

“O governo patrocina muito feitiço. Luanda é o bairro do José Eduardo dos Santos. Como é que vamos lá tirar o feitiço, se o soba de lá é mais forte do que todos nós juntos?”, questiona-se o regedor.

Outros membros envolvidos na operação dão conta também da deslocação da “equipa antifeitiço” à comuna do Luremo, supostamente a convite do administrador local, Venâncio Sahunzo, a 19 de Janeiro. “Os quimbandeiros foram acompanhados pelo soba Samalata, também conhecido como o general dos feiticeiros, e regressaram a Cafunfo a 4 de Fevereiro”, refere Jordan Muacabinza.

A presunção da inocência

Sobre as acusações formuladas contra os supostos feiticeiros e de que modo estes podem provar a sua inocência, MwaCapenda Camulemba sublinha a ausência do princípio de presunção de inocência nesse tipo de julgamentos tradicionais. “Há os quimbandeiros com visão e as autoridades tradicionais que, em colaboração, trabalham para tirar o feitiço. Só acusam quando têm certeza”, refere.

Segundo o analista jurídico do Maka Angola, Rui Verde, “do ponto de vista legal estrito, a Constituição é clara ao reconhecer o estatuto, papel e funções das instituições tradicionais e ao não impor uma visão cultural única sobre a sociedade. No entanto, o papel das formas de organização tradicional tem que respeitar a dignidade e a liberdade humanas, bem como a Constituição”.

As manifestações tradicionais devem parar quando ofendem os direitos básicos de outras pessoas e a sua dignidade. Existe um balanço cuidado que tem que ser feito entre a liberdade e dignidade pessoais e as tradições e costumes. Estes últimos têm que respeitar os primeiros forçosamente", esclarece.

A petição

Entretanto, no passado dia 1 de Fevereiro, mais de cem jovens subscreveram uma petição legitimando a Mwana Cafunfo e o regedor MwaCapenda Camulemba, e instando o administrador Luís Figueiredo Muangombe a permitir a continuidade da campanha de recolha de feitiço, assim agindo contra o que alegam ser a protecção dada pelas autoridades “a alguns feiticeiros privilegiados”.

Os signatários, bem ao estilo linguístico do Mestre Tamoda, gastaram algum latim “facticius” e também algum francês “fetiche”, e recorreram a sermões inspirados pelos livros do Apocalipse e de Samuel para convencerem o administrador do mérito da sua causa: o apelo à continuidade da campanha.

Na missiva, os peticionistas, que “vêm transversalmente deste rezingar, junto do senhor administrador, pelo facto de ter suspendido definitivamente a remoção do feitiço”, alegam que  “neste município [do Cuango] o feitiço mata mais que uma arma de fogo”.

Segundo os descontentes, “as razões apresentadas pelo senhor administrador não são convincentes” para a suspensão da campanha. O administrador, conforme acima referido, insurgiu-se contra a violência e a exibição, em praça pública, dos supostos feiticeiros nus”.

E prosseguem: “Os adivinhadores, que conhecem o segredo da ciência oculta, alegam que, para descodificar um feiticeiro, é necessário que este seja despido, segundo rituais tchokwes do qual o excelência faz parte”, notam.

Citam dois exemplos. Primeiro, alegam que, a 28 de Janeiro, “foi encontrada na vila de Cafunfo uma bruxa nua com intentos de feitiçar alguém”. Dizem que o contra-ataque é exorcizá-la nua também.

“Podemos também dar um exemplo mais visível do Auto [Alto] Mandatário da República, ao ter assistido à cerimónia da investidura da Miss Angola, em que elas desfilam nuas (de cuecas) e [ainda] por cima são aplaudidas, e o acto é apresentado na Televisão Pública de Angola (TPA), sendo um ritual, as pessoas respeitam!”, afirmam os subscritores.

Os autores da carta acusam o administrador Luís Figueiredo Muambongue de discriminação. “Chegou-se a uma conclusão que, por terem mexido no feitiço dos mais privilegiados, isto é que comoveu o senhor administrador para a não continuidade do processo. Ou será que o senhor administrador diz que não existe o feitiço?”

Por último, os jovens avisam que uma resposta negativa do administrador causará uma manifestação, porque “a população está disposta a sair à rua”, e as consequências serão da “inteira responsabilidade” de Luís Figueiredo Muambongue.

 

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