O Lixo da Ditadura
Há dias, fui visitar um tio no Bairro Hoji-ya-Henda, construído no período colonial, na periferia da cidade de Luanda. Recebi instruções por telefone para chegar a sua casa evitando as ruas de difícil acesso ou mesmo intransitáveis devido aos charcos de água estagnada criados pelas recentes chuvas e aos amontoados de lixo.
Há muitos anos que, na época das chuvas, o tio Domingos luta contra a inundação da sua casa, resignando-se à falta de saneamento básico da rua e do bairro. Ano após ano, a casa é invadida por um exército de ratos e baratas e pelo mau cheiro do lixo, das águas estagnadas e das fossas entupidas à sua volta. Ele não fala de política. Mas falta de saneamento básico e a acumulação de lixo nos bairros onde vive a maioria dos residentes da capital são questões políticas.
Para se chegar à casa do amigo Branquima Kituma, no mesmo bairro, não há como contornar: tem de se passar pelo lixo. “Estou a viver no lixo.”
Em zonas do município de Viana, no Cazenga, Palanca, Sambizanga, Golf, Rocha Pinto e vários outros bairros periféricos, as condições de saneamento são, como descreve Gerson Martins, uma catástrofe.
Essa questão do lixo ressurgiu na minha preocupação por causa de um plano de alguns moradores do Hoji-Ya-Henda que pretendiam depositar lixo defronte do edifício da administração local, como forma de protesto. A ideia gerou algum interesse nas redes sociais.
Branquima Kituma disse-me que a administradora local é apenas um peão, e apontou o governo provincial de Luanda como responsável pela lixeira em que a periferia do centro da cidade se transformou.
Todavia, em Julho passado, o governador de Luanda, Domingos Graciano, anunciou a implementação de um novo modelo de recolha de lixo descentralizado, em vigor desde Agosto. "Nesta fase de passagem do modelo centralizado no GPL [Governo Provincial de Luanda] para um modelo de limpeza municipal desconcentrado, as administrações municipais e de centralidades terão de reforçar e melhorar os serviços de fiscalização, dialogar com os moradores e comissões de moradores, punindo os que colocam em risco o saneamento do meio", disse, na altura, Graciano Domingos.
O governador garantiu também a disponibilidade de verbas por parte do Estado para pagar às operadoras, de modo que estas garantissem a limpeza da capital. Nos quatro meses de implementação do novo plano, a acumulação do lixo na periferia aumentou de forma assustadora. O governador disse que o sucesso do plano dependia da população, a mesma que, de um modo geral, não sabe onde colocar o lixo por falta de recolha. Falou apenas em punição para o cidadão e não para os dirigentes, sempre acobertados pela impunidade.
Desapareceu o dinheiro? Contrataram-se operadoras incompetentes, as administrações municipais não funcionam? O governo provincial lavou as mãos? Onde está o governo central? Essas questões resvalam inquestionavelmente para a esfera da governação.
O esquema do lixo no MPLA
Os concursos públicos, contratos e esquemas para a recolha do lixo têm sido um comedouro para alguns membros do regime, que saqueiam o Estado à vontade e assim sustentam as suas vidas de luxúria.
Reflecti, por consequência, sobre a investigação de um contrato de recolha de lixo no Lubango, que não cheguei a publicar. Em 2013, o deputado e segundo secretário do MPLA na província da Huíla, Vigílio Tyova, vencera o concurso público para a recolha de lixo na cidade capital da província, o Lubango.
A sua empresa, Huíla Recycling Company, não tinha nem capacidade nem meios para a empreitada de US $70 milhões anuais que apresentara para a recolha do lixo em alguns bairros da cidade. O deputado, que acumulava na altura o cargo de gerente da empresa, ganhara o concurso público antes do prazo estabelecido para a avaliação das propostas. Um dia antes do anúncio formal dos resultados do concurso enviara a alguns dos seus colaboradores um e-mail celebrando antecipadamente a vitória.
Abandonei a investigação, justificando, para mim mesmo, que não valia a pena expor os dirigentes do MPLA que roubavam no lixo ou através do lixo, tal a sujidade do esquema.
Não me ocorrera, por exemplo, que a bilionária Isabel dos Santos, depois do negócio dos ovos, também tivera uma passagem bastante lucrativa pelo negócio do lixo, através da Urbana 2000, nos idos de 90.
De certo modo, a contra-informação do regime tem conseguido manter, através do seu trabalho de desinformação junto da população temerosa, alienada ou menos esclarecida, a ideia de que os dirigentes podem roubar, desgovernar e fazer mal ao povo todos os dias. Não devem é ser criticados todos os dias, porque parece mal, parece perseguição, e os governantes também ficam tristes. O malvado passa a ser defendido como se fosse a vítima.
Portanto, não valia a pena insistir.
Entretanto, uma médica de saúde pública, que prefere não ser mencionada pelo nome, explicou que a acumulação de lixo nos bairros, bem como a falta de saneamento básico em geral, tem sido um grande vector de transmissão de doenças “como a malária, a cólera, as doenças respiratórias, as doenças de pele, a conjuntivite, a poliomielite, a meningite e uma grande gama de outras doenças.”
Segundo a médica, uma política séria de saneamento básico poderia “tirar o peso mórbido à população e desviar o trabalho do sector hospitalar para patologias não infecciosas. Há uma gama enorme de doenças evitáveis só com o controlo do lixo e saneamento do meio”.
Em Luanda, só é preciso recolher o lixo com regularidade no centro da cidade – a sala de visitas do regime -, de modo a mostrar a sofisticação e a modernidade angolanas aos visitantes estrangeiros.
A argumentação, para o efeito, é simples. Da mesma forma que o presidente disse que já havia pobreza quando nasceu e, por isso, o problema não era dele nem do seu governo, o mesmo pode dizer do lixo. Quando nasceu, também os seres humanos já produziam lixo e defecavam ao ar livre. Este, portanto, não é um problema seu ou do seu governo. É do povo.
O que se espera de um governo incapaz de organizar a recolha do lixo na capital das 18 províncias que administra? Até o Parque e Biblioteca Infantil Zé Dú [diminutivo de José Eduardo, com que o presidente é tratado informalmente], no Bairro Azul, foi transformado numa verdadeira lixeira. A biblioteca, que nunca funcionou, incendiou-se por negligência. Recentemente, a JMPLA tentou organizar uma campanha para a sua limpeza, mas os voluntários do partido não apareceram.
Todavia, qualquer angolano com menos de 40 anos de idade também pode dizer que, quando nasceu, já o MPLA estava no poder e até agora é o único a governar a Angola independente. Por isso, a responsabilidade pelo que corre mal na governação dos angolanos cabe ao MPLA e ao seu presidente, que lá está há 36 anos.