A Perigosa Lei das Medidas Cautelares
Entrou de rompante na vida judicial angolana a nova Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal (Lei n.º 25/15, de 18 de Setembro), que legitimou a deslocação para prisão domiciliária dos 15 activistas, os "revús". Tendo em conta o factor surpresa, convém proceder a uma análise mais detalhada dessa lei, para perceber se representa ou não um avanço na legislação penal angolana, no sentido de um direito processual penal constitucionalizado, moderno e humanista.
Desde já se adianta uma conclusão: esta lei, embora represente uma modernização do Direito, contém demasiados perigos para os cidadãos. De certa maneira, é apenas uma modernização do arbítrio e mais um expediente legal da ditadura. Vejamos em concreto:
Primeiro, os elogios. Em termos sistemáticos, nota positiva para a actualização da matéria das medidas cautelares, ainda muito marcada pelo dogmatismo do Código do Processo Penal português de 1929; foi actualizada em 1992, num ambiente muito distinto do presente. No entanto, teria sido preferível elaborar um novo código do processo penal. Este é cada vez mais uma manta de retalhos que desencadeia muitas confusões nos variados operadores judiciários.
É também de assinalar como positiva a introdução dos princípios da necessidade, proporcionalidade, subsidiariedade e adequação na aplicação de medidas cautelares. Note-se que os princípios também são regras, e não meras bandeiras. Qualquer magistrado tem de os cumprir e explicitar o seu respeito concreto em cada decisão que toma. Isto quer dizer que em todas as decisões sobre prisão preventiva ou prisão domiciliária (por exemplo), o magistrado tem de fundamentar porque é que no caso concreto tal é necessário, proporcional e adequado, justificando também que não exista outra medida cautelar alternativa menos gravosa.
Contudo, na leitura dos variados artigos da lei encontram-se muitos preceitos que revelam a tendência de manutenção de uma ideologia penalista ainda arbitrária e opressora.
A primeira manifestação dessa ideologia resulta da conjugação dos artigos 5.º e 7.º. Estes artigos tornam possível a entrada em qualquer domicílio, de dia ou de noite, com uma mera autorização emitida pelo Magistrado Público (artigo 7.º, n.º 5: supomos que há aqui um lapso de escrita e, quando se escreve Magistrado Público, queria escrever-se Magistrado do Ministério Público). Tal decorre de uma ampla definição dada pelo artigo 5.º a flagrante delito: crime que se esteja a cometer, que tenha acabado de ser cometido, ou quando a seguir à prática do crime haja perseguição, ou uma pessoa seja encontrada com objectos ou indícios de que cometeu o crime ou nele participou. Esta definição alargada de flagrante delito, um pouco confusa, permite entrar em casa de qualquer pessoa, a qualquer hora, desde que se suspeite de que a mesma será encontrada com objectos ou indícios de um crime cometido há pouco tempo. E tudo isto pode acontecer sem qualquer intervenção judicial, apenas com o aval do Ministério Público, órgão dirigido superiormente pelo presidente da República. Portanto, aqui temos o perigo número um.
Em seguida, há que realçar o artigo 11.º, que permite que um detido permaneça incomunicável durante quase 48 horas. Determina essa norma que o detido não pode comunicar com ninguém antes do primeiro interrogatório, a não ser com o seu advogado ou com um familiar, neste caso para manifestar a pretensão de constituição de advogado. Assim, em teoria, poder-se-á estar 47 horas incomunicável, e só nos breves instantes que antecedem o interrogatório é possível contactar alguém. Obviamente, a lei devia exigir que, imediatamente após a detenção, o suspeito contactasse um advogado ou um familiar.
Mas o pior vem depois. O artigo 12.º determina que o detido tem de ser interrogado pelo Ministério Público no prazo máximo de 48 horas. Contudo, a sanção para o caso de tal não acontecer é a de uma mera irregularidade processual. Ora, as irregularidades processuais podem ser sanadas facilmente nos termos do artigo 100.º do Código do Processo Penal. Numa situação destas, o que teria sentido era declarar a nulidade, nos termos do artigo 98.º do CPP, ou considerar a detenção imediatamente ilegal, obrigando à libertação do detido. Tal como está, permite manter uma pessoa detida por tempo indeterminado.
Levanta algumas dúvidas ser o Ministério Público a decretar a prisão preventiva e não um juiz (artigo 15.º), embora tal decisão dependa da estrutura que se pretenda dar ao processo penal. E em Angola vive-se uma tensão mista entre o sistema português, um sistema autocrático e alguma americanização.
Estranho é também o artigo 23.º, n.º 2 da mesma lei. Inicialmente, admite que um juiz mande libertar um preso preventivo, mas depois admite que este possa ser novamente preso caso as circunstâncias o justifiquem. Então, por exemplo, um dia o juiz pode mandar libertar um preso preventivo, e três dias depois o Ministério Público pode vir a prendê-lo novamente… Esta medida também se liga à prevista no artigo 42.º, que admite expressamente que, se findar o prazo de prisão preventiva, o arguido pode continuar preso à ordem de outro processo. Basta “arranjar-lhe” dois processos. É preso à ordem de um, passa o prazo e fica preso à ordem de outro…
Interessante é o estabelecimento de prazos de prisão preventiva e domiciliária nos termos dos artigos 40.º e 34.º. A questão é que a norma anteriormente referida pode esvaziar estas cominações legais. Também é relevante referir a necessidade de os pressupostos das detenções serem reexaminados de dois em dois meses (artigo 39.º). Contudo, mais uma vez, a sanção para a ausência deste reexame é a mera irregularidade processual.
Não se pode dizer que não haja evoluções positivas nesta lei. Mas, fundamentalmente, ela consagra mecanismos legais para manter qualquer pessoa indefinidamente presa, se tal for a vontade do Estado. E isso é um perigo.
Fica a questão: os deputados da Assembleia Nacional previram estas consequências, ou há aqui um grande descuido técnico ou a habitual má-fé política dos opressores?
Como em tudo o que se refere à lei, em última análise, a boa ou má aplicação vai depender dos critérios que os juízes decidam utilizar. Ou, melhor dizendo, no caso de Angola, dependerá do mais alto magistrado da nação, José Eduardo dos Santos, que em tudo interfere e quem a Constituição putativamente concede poderes para tudo.