Lei de Ganga

Não, não há prazer algum em ver na prisão Desidério Patrício de Barros, o soldado da guarda presidencial que matou o engenheiro Manuel Hilberto de Carvalho Ganga a tiro pelas costas. Mas há o desejo de condenar quem lhe colocou a arma na mão, quem o ensinou a disparar contra prisioneiros desarmados, quem lhe deu ordens para não respeitar a Constituição. Tão culpado é o que mata como aquele que manda matar. Não é só Desidério quem deve ser julgado: os seus chefes supremos também deveriam tê-lo sido, pois eles são os culpados máximos da morte de Ganga.
Ganga foi morto pelas costas com dois tiros, depois de ser detido perto do Estádio dos Coqueiros e levado pela segurança militar para o perímetro do Palácio Presidencial. Ganga estava desarmado. Ganga não oferecia perigo. Mesmo morto, o seu funeral também foi reprimido violentamente pela Polícia Nacional.
Por estas razões, perante a decisão do juiz que inocentou Desidério Patrício de Barros, a revolta cívica tem de ser permanente, profunda, intensa. Não porque se queira ver o soldado na prisão, mas pelos motivos hipócritas da decisão judicial.
Primeiro, a Lei: quem mata uma pessoa é culpado do crime de homicídio. Só não o é caso o acto de matar tenha qualquer causa justificativa. Entre essas causas, pode estar a legítima defesa, o estado de necessidade ou algum erro sobre as circunstâncias. Pode haver uma situação em que alguém mate por acidente, em que a arma dispare sozinha, em que alguém dispara para as pernas e a arma tem a mira mal calibrada, atingindo mais acima; contudo, nestes casos, quase sempre haverá um comportamento negligente, o qual deverá ser punido.
Ora, na morte de Ganga, não se verifica qualquer uma destas causas justificativas. O Tribunal considera que, quando disparou, Desidério agiu no cumprimento do seu dever, uma vez que Ganga estava em fuga numa zona de alta segurança.
Contudo, já há muitos anos, pelo menos desde o final da Segunda Guerra Mundial, que o cumprimento de dever não é causa justificativa para cometimento de um crime.
Aliás, o cumprimento de um dever cessa quando leva a cometer um crime. Este é um postulado básico do direito penal moderno.
A defesa de cumprimento de dever ou cumprimento de ordens foi o argumento usado pelos torcionários sanguinários nazis depois de perderem a guerra. Não adiantou: foram enforcados.
As regras internacionais a que Angola adere por força do artigo 13.º, n.º 1 da Constituição são muito claras: “O facto de uma pessoa ter agido de acordo com uma ordem do seu governo / ou dever oficial não a exonera de responsabilidade nos termos do direito internacional, desde que uma escolha moral fosse de facto possível."
Não há dúvidas de que Desidério não estava ameaçado por um perigo iminente. Nem o Presidente estava perante um perigo imediato (ou sequer mediato).
O soldado poderia ter feito a escolha de não disparar, de disparar para o ar, de disparar para as pernas. Atirar a matar foi uma escolha consciente.
Por isso, não se percebe que Direito foi aplicado pelo juiz José Domingos Pereira. Seguramente, não foi direito penal angolano consonante com a Constituição do país.
Ninguém que mate um inocente desarmado presta um serviço relevante à pátria. O juiz do processo, com as afirmações que produziu e as decisões que tomou, também não prestou esse serviço.