As Relações Angola-Portugal numa Perspectiva Histórica

Este é um tempo em que as relações entre Angola e Portugal voltarão forçosamente a entrar num período tempestuoso.

As mudanças em curso em Angola colocarão interrogações à diplomacia portuguesa, cuja actuação nos últimos anos se tem pautado por um servilismo oportunista, metaforicamente apelidado de realismo, mas não o sendo. Na verdade, a postura portuguesa não tem sido de realismo, nem sequer de defesa dos interesses de Portugal ou dos portugueses – tem apenas procurado aproveitar, no curto prazo, o máximo de benefícios, sem cuidar do efectivo estabelecimento de relações com a sociedade angolana que garantissem a sustentabilidade das afinidades seculares. O modelo seguido pela diplomacia portuguesa é, de resto, do maior servilismo, com vista a alcançar rapidamente os maiores lucros. Esta postura é sintetizada pelo ex-embaixador e ex-ministro dos Negócios de Estrangeiros português, que depois de deixar estes cargos, se tornou consultor do presidente da República de Angola. Ou ainda por aquele outro ex-embaixador e ex-ministro dos Negócios Estrangeiros português que, após cessar estas funções, se tornou presidente do conselho de administração de um banco, designado para esse cargo pelos accionistas estatais angolanos… Et pour cause.

As relações entre Angola e Portugal começaram no século XV. Toda a gente conhece a história da chegada de Diogo Cão à foz do Rio Congo e os seus contactos iniciais com o reino do Congo. O que muitas vezes não se sabe é o que aconteceu depois. Ao contrário do que se poderia pensar, o reino do Congo não era constituído por uma cultura que rapidamente se viu avassalada pelo brilho europeu. Na realidade, as duas culturas e sociedades eram mais parecidas do que poderia pensar-se. Em termos de população, na manufactura de certos artigos (como tecidos e esculturas), bem como do ponto de vista da soberania “era bastante idêntico a Portugal” (de acordo com Douglas Wheeler). Se o primeiro encontro entre Portugal e o reino do Congo decorreu pacificamente, a situação acabou por se deteriorar num ápice. A verdade é que a política externa e de expansão portuguesa, na altura, obedecia a dois objectivos contraditórios. Por um lado, procurava-se criar uma “comunidade cristã e comercial” nesta zona de África, sem recorrer à força e à conquista. Por outro lado, procurava-se a riqueza e a prosperidade, sem embargo de outras considerações. Esta segunda vertente rapidamente se tornou predominante, havendo uma contradição clara entre as palavras do rei português, amáveis, humanas e cordatas, e a atitude dos portugueses chegados ao local, que depressa se aperceberam do potencial de enriquecimento trazido pelo comércio de escravos. O certo é que já em 1500, nem 20 anos depois dos primeiros contactos, o rei do Congo transmitia ao seu homólogo português as suas preocupações face às actividades dos portugueses. Ao mesmo tempo, a situação no Congo também era confusa: logo no início do século XVI, houve uma espécie de guerra civil que levou ao trono um filho bastardo do anterior rei. Tratava-se de Afonso I, que apesar da educação portuguesa manteve uma acção de firme independência na gestão dos assuntos locais. E o facto é que o incremento do comércio de escravos, que os portugueses patrocinaram e comandaram, acabou por retirar qualquer hipótese de boas e pacíficas relações entre Portugal e as terras angolanas, corroendo as estruturas políticas e sociais locais.

A história primeva de Portugal em Angola é a história do estabelecimento de pontos de força na costa e de rápidas incursões internas para promover o comércio de escravos, primeiro para São Tomé e depois para o Brasil. Angola tornou-se o grande fornecedor de escravos para o Brasil, criando assim a triangulação comercial do império português entre Angola, o Brasil e Portugal. A partir do momento em que o comércio de escravos se torna a principal fonte de rendimento portuguesa em Angola, as ideias pacifistas e cristãs dão lugar à conquista militar, que desmembra paulatinamente o Congo e leva os portugueses mais para sul. Aí, o padrão torna-se definitivamente o de conquista da costa e estabelecimento de fortes e feitorias para garantir o comércio, tentando, ao nível da política interna, seguir uma política de “dividir para reinar”, explorando as muitas diferenças entre os povos nativos angolanos, ora apoiando uns, ora outros, ora promovendo “golpes de Estado”, ora debelando “ golpes de Estado”. Não sendo moral ou ética, a política portuguesa era inteligente, conseguindo com poucos meios alcançar os seus objectivos de domínio e promoção do comércio de escravos para o Brasil.

Não quer isto dizer que vários governos centrais não se interessassem por Angola, procurando desenvolver a colónia para além da escravatura e promovendo aquilo a que se chama hoje “diversificação”. Tem especial relevo o trabalho desenvolvido pelo governador Francisco Sousa Coutinho, nomeado pelo Marquês de Pombal, no século XVIII, ou, mais tarde, as políticas inspiradas por Sá da Bandeira, já no século XIX, após a independência do Brasil, que tentam criar um “Novo Brasil” em Angola. Mas estas são excepções, num quadro geral de desatenção a que Angola foi votada durante séculos, tornando-se sim uma espécie de colónia do Brasil. Aliás, vale a pena referir que a frota que libertou Luanda dos holandeses, em 1648, comandada por Salvador Correia de Sá, veio do Brasil.

No século XIX, a partir da independência do Brasil e da subsequente abolição da escravatura, processo muito menos linear do que ensinam os livros de História, a visão de Portugal face a Angola muda, e tenta-se criar e povoar uma colónia semelhante ao Brasil. Note-se que, ao longo do tempo, Angola nunca aceitou de bom grado a conquista portuguesa, e as guerras contra a presença lusa sucederam-se. De facto, os anais históricos só consideraram que o país ficou totalmente conquistado na década de 1920, havendo ainda revoltas em 1940.

Ao longo deste tempo, a dupla vertente na atitude política portuguesa manteve-se sempre. Existiram aqueles que gostavam verdadeiramente de Angola e queriam desenvolver esta terra de forma pacífica e trazendo-lhe prosperidade. Houve sempre aqueles, os predominantes, que viram Angola como um lugar onde ir buscar rapidamente riquezas, ignorando os povos nativos, embora colaborando com uns em detrimento de outros.

Podemos dizer, de resto, que a política externa portuguesa actual repete este objectivo do passado: garantir o enriquecimento rápido de alguns, mas sem a inteligência dos ancestrais, sem perceber que Angola não é um monólito, mas um país diverso e plural.

Apenas retomando os grandes objectivos antigos do ManiKongo e do rei de Portugal, que quiseram criar uma zona de paz e progresso, assente no respeito e na pluralidade de angolanos e portugueses, poderão recompor-se as relações seculares entre Angola e Portugal.

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