A Acusação contra a Liberdade de Pensamento

Hoje, em Angola, ter ideias é crime.

Tal é o principal resultado da leitura dos 36 artigos da acusação produzida contra os mais famosos presos políticos da actualidade.

A essência da acusação assenta num tecnicismo básico. Como não havia factos ou material real para produzir uma acusação “a sério”, nem que fosse por tentativa de cometer um crime, foi-se buscar a figura dos “actos preparatórios. A questão é que os actos preparatórios geralmente não são punidos. A sua punição tem que estar prevista expressamente e só o está em casos muito delimitados, como serão os crimes de rebelião e prática de atentado contra o presidente da República.

Assim, a razão para se acusar uns jovens, que se reuniam para trocar ideias, de atentado e rebelião é o facto de nõa existir um crime consumado ou tentado de que os acusar. Por isso, foi necessário recorrer à figura excepcional dos actos preparatórios. Ou, dito de outro modo, como não há crime, transformaram-se uns encontros em casa em actos preparatórios de um crime. É bizarro.

O Ministerio Público deve defender a legalidade, não criar quadros surreais.

Mas o que são actos preparatórios? Os actos preparatórios são comportamentos passados anteriormente ao início da execução da infracção, que se caracterizam por ações externas, percebidas pelos outros e objectivamente perigosos. Os actos preparatórios são intencionalmente direccionados para a posterior execução e consumação de certos crimes.

Portanto, nesta ficção criada pela acusação do M.P., seria necessário perceber se os actos preparatórios seriam idóneos para alcançar um resultado, e se as reuniões descritas na acusação serão um primeiro passo de um iter criminis que culminaria na execução material de operações efectivas para derrubar o regime fora dos limites constitucionais. Não basta dizer que os jovens se reuniam e que manifestavam discordância face ao regime. Quantos conjuntos de pessoas em cafés, praças ou restaurantes não se reúnem e se referem em termos desprimorosos ao regime?

Além disso, os actos têm de ser perigosos. Reunir dinamite para fazer um atentado é um acto preparatório perigoso. Planear um atentado, desde que haja provas de tal, é um acto preparatório perigoso. Contudo, pessoas reunidas para discutir ideias políticas não é um acto perigoso.

Ou seja, um acto preparatório, para ser punido, tem de ser adequado e perigoso.

Onde estão a adequação e o perigo descritos na acusação? A acusação cai no ridículo. Fala de reuniões e de resumos de um livro do autor norte-americano Gene Sharp, intitulado From Dictatorship to Democracy (“Da Ditadura à Democracia”). Gene Sharp é conhecido por advogar a não- violência na resolução dos conflitos mundiais, e criou em 1983 o Instituto Albert Einstein, uma ONG dedicada à promoção da resolução pacífica dos conflitos. Sharp foi professor de Ciência Política em Dartmouth, nos EUA, e várias vezes indicado para receber o Prémio Nobel da Paz. Dificilmente este docente reformado e defensor da não-violência será um teórico das revoluções criminosas! Haverá aqui alguma falta de informação do Ministério Público angolano.

Depois, afirmam que o referido livro foi a base teórica da Primavera Árabe, que é descrita como um fenómeno ameaçador, semelhante a um endiabrado e mortífero maremoto. O livro não foi a base teórica da Primavera Árabe. Nabil Fahmy, antigo embaixador de Hosni Mubarak nos EUA, entrevistado por um blogger egípcio, riu-se quando lhe falaram de Gene Sharp, dizendo que nunca tinha ouvido falar nele, e que certamente muito menos os manifestantes da Praça Tahrir. A relação entre Gene Sharp e a Primavera Árabe é idêntica à relação entre o Mickey Mouse e o Bonga.

E a Primavera Árabe, à partida, não foi um fenómeno negativo. Consistiu no derrube de uma série de ditaduras e a tentativa da sua substituição por democracias. Se o poder angolano considera que vive numa democracia, não deveria ter medo, mas antes aplaudir a Primavera Árabe. Aliás, o exemplo dado ao longo da acusação, escolhendo a Tunísia como referência criminosa, é hilariante. A Tunísia é um dos poucos países da Primavera Árabe que até ao momento, apesar de vários problemas, deu certo. A Tunísia expulsou um ditador ladrão, que tinha entregado toda a riqueza nacional à família, e substituiu-o por uma democracia que tem funcionado razoavelmente, sem radicalismos. Por isso, quem tem medo da Tunísia?

A verdade é que, neste julgamento, se está a julgar a liberdade de pensamento e de expressão. Os factos essenciais assentam em reuniões, discussões de ideias, livros, opiniões. Nada mais. O governo quer criar uma janela para a mente das pessoas. Isso é impossível. A mente é livre.

E, do ponto de vista do Direito, é claro. A Constituição, no seu artigo 40.º, garante a liberdade de expressão, enquanto o artigo 41.º garante a liberdade de consciência.
Portanto, este é um caso de defesa da liberdade de expressão.

E, assim, ninguém deve ficar em silêncio perante este abuso jurídico. Recorde-se o poema de Niemöller, a propósito do nazismo e do silêncio:

Quando os nazis vieram buscar os comunistas,
fiquei em silêncio; eu não era comunista.
Quando prenderam os sociais-democratas,
fiquei em silêncio; eu não era social-democrata.
Quando vieram buscar os sindicalistas,
 não disse nada; eu não era sindicalista.
Quando buscaram os judeus,
fiquei em silêncio; eu não era judeu.
Quando eles me vieram buscar,
já não havia ninguém que pudesse protestar.

 

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