Jovens Acusados de Preparação de Golpe de Estado

A ideia de uma Angola sem José Eduardo dos Santos como seu presidente ou qualquer protesto contra os seus actos de governação continuam a ser uma questão de crime e castigo. Dos Santos está no poder há 36 anos, e os seus críticos acusam-no de estar a levar o país à ruína. Todavia, ele continua a querer ser celebrado como o arquitecto da paz e o provedor da estabilidade.

O procurador-geral da República e o ministro do Interior informaram ontem a Assembleia Nacional sobre a detenção de 15 jovens, a 21 de Junho, a quem as autoridades acusam de preparação de rebelião e atentado contra o presidente da República.

Estão detidos Luaty Beirão, Nito Alves, Afonso Matias “Mbanza Hamza”, José Hata, HItler Samussuko, Inocêncio Brito “Drux”, Sedrick de Carvalho, Albano Bingo, Fernando Tomás “Nicola”, Nelson Dibango, Arante Kivuvu, Nuno Álvaro Dala, Benedito Jeremias, Domingos da Cruz e Osvaldo Caholo. Os detidos foram distribuídos por diversas esquadras da capital.?

Durante três horas, o procurador-geral, general João Maria Moreira de Sousa, e o ministro Ângelo Tavares justificaram as acções dos seus órgãos. As referidas autoridades apresentaram um vídeo como prova inequívoca do acto de preparação da rebelião. O vídeo foi secretamente filmado por um agente governamental infiltrado no grupo de jovens detidos, enquanto estes realizavam um debate.

No vídeo, segundo fonte do Maka Angola, Domingos da Cruz e Luaty Beirão discutem formas de mobilização popular e divergem sobre as consequências. Domingos da Cruz defende a desmobilização imediata em caso de reacção armada por parte das autoridades contra manifestantes. Por sua vez, Luaty Beirão opina que a violência institucional não deve intimidar os manifestantes, mesmo que as forças policiais e os militares disparem contra os manifestantes.

A fonte nota que, no vídeo, os jovens mantêm a mesma postura: “o fim do poder do presidente José Eduardo dos Santos pela via pacífica”. 

Por sua vez, no seu comunicado de imprensa datado de 25 de Junho, a Procuradoria-Geral da República (PGR) refere que os jovens se reuniam regularmente desde o dia 16 de Maio, com o objectivo “de formar formadores para mobilizar a população de Luanda para uma insurreição e desobediência colectiva”.

Como instrumentos para a realização do golpe de Estado, segundo infere a PGR, os alegados insurrectos tinham em sua posse “manuais de instruções e outros documentos, bem como escritos em cadernos com teores comprovativos das intenções criminosas do grupo”.

Como indício de crime, a PGR referiu, no seu comunicado, que os jovens planificavam a formação de formadores com vista a mobilizar a população de Luanda “para uma insurreição e desobediência colectivas”.

Os jovens são conhecidos por organizarem manifestações pacíficas desde 2011, exigindo sobretudo a demissão do presidente José Eduardo dos Santos. Nito Alves, Luaty Beirão e Mbanza Hamza contam cada um com mais de cinco detenções no seu currículo, para além de várias sessões de espancamentos e tortura às mãos das forças policiais e de segurança.

Laurinda Tavares, manifestante e  vítima conhecida da brutalidade policial, participou em cinco reuniões dos alegados conspiradores. “Nós decidimos consensualmente o nosso engajamento na luta pacífica pela mudança. Nunca falámos em golpe de Estado. Houve apenas um mano que uma vez, num dos debates, falou em violência, e reprovámos logo a intervenção dele."

Interrogatórios e  o princípio da não-violência

Os detidos têm estado a ser interrogados desde segunda-feira por terem participado numa série de três debates semanais baseados na obra de Gene Sharp, famoso académico pacifista norte-americano, From Dictatorship to Democracy: A Conceptual Framework for Liberation (Da Ditadura à Democracia: Uma Abordagem Conceptual para a Libertação). Este livro tem sido utilizado a nível internacional como um manual de instrução para estratégias de luta não-violenta contra ditaduras no mundo. 

O livro é, de resto, mundialmente conhecido como “um modelo para a resistência não-violenta contra regimes repressivos. Quando o Serviço de Investigação Criminal (SIC) os deteve, os jovens discutiam estratégias pacíficas contra o autoritarismo.

O livro original de Gene Sharp, uma das "armas sofisticadas" dos jovens na alegada preparação do golpe de estado contra o presidente José Eduardo dos Santos.

 

No seguimento da operação, várias equipas do SIC, apoiadas por forte aparato policial, escoltaram cada um dos 13 detidos no debate às suas residências, onde efectuaram revistas e confiscaram os seus computadores, assim como dos seus familiares, e ainda câmaras fotográficas, telefones, livros, cadernos de apontamentos e outro material.

A Polícia Nacional, em comunicado emitido no mesmo dia, informou que os jovens foram detidos em flagrante delito, enquanto supostamente preparavam actos contra a ordem pública e atentados contra a segurança de Estado. 

De certo modo, a operação está relacionada com a crise económica actual, que se agrava diariamente e ameaça a estabilidade do próprio regime. Num relatório interno recentemente revelado pelo jornal português Expresso, a petrolífera nacional Sonangol enfrenta uma situação de falência técnica. A Sonangol, com as dezenas de biliões de dólares que gera anualmente com as receitas do petróleo, é a essência do poder de Dos Santos e do seu séquito. 

A recente visita do presidente à China, alegadamente para obter uma moratória ao pagamento das dívidas e a conseguir novos empréstimos, gerou uma onda de indignação na sociedade devido ao secretismo das negociatas. A especulação popular segundo a qual Dos Santos foi trocar grandes extensões do solo pátrio por novos empréstimos, promovendo, desse modo, a instituição de colonatos chineses, tem vingado entre a opinião pública. 

Revistas ao domicílio

Oito agentes da polícia fortemente armados e três operativos do SIC conduziram o rapper Luaty Beirão, algemado, à sua própria casa no dia da detenção. Durante meia hora, segundo informação de familiares, os agentes confiscaram, sem qualquer mandado de busca e apreensão, o equipamento fotográfico da esposa de Luaty Beirão, avaliado em mais de US $20,000. A esposa, que prefere não ser identificada, é fotógrafa profissional. Ficou sem todo o seu trabalho, cartões de memória, apontamentos, computadores, portefólio de fotografias já pagas por clientes e outros materiais.

O irmão de Luaty, Pedro Beirão, confirmou ao Maka Angola que “o chefe de missão disse apenas à família que tinham um mandado verbal de busca e apreensão de todo o equipamento digital existente na casa”.

Por sua vez, a esposa telefonou a um advogado para informar-se sobre a existência, na legislação angolana, de mandados de busca verbal, mas os agentes ignoraram-na e forçaram a entrada. A esposa denunciou ainda a recusa da polícia em fazer uma lista dos bens confiscados, para assinatura quer pelos proprietários que pelos agentes, conforme exigido por lei.

A família reparou ainda que a polícia filmou toda a operação, como forma de infligir mais humilhação. 

Já em casa de Nito Alves, os agentes “recolheram tudo o que tinha escrita, incluindo os livros da universidade”, de acordo com o seu pai, Fernando Baptista. Nito Alves não tem computador. Um terceiro activista, Nelson Dibango, técnico de informática, viu a polícia confiscar cinco computadores e impressoras, incluindo o do seu pai, em casa deste. Moisés Miguel confirmou que os agentes  não exibiram qualquer mandado de busca. Como prova, conta o pai, os agentes também confiscaram a sua colecção de exemplares do diário estatal, o Jornal de Angola.

O jornalista Sedrick de Carvalho, de 25 anos, que também participara na reunião, foi igualmente detido e em seguida escoltado até sua casa por policiais fortemente armados. Uma vez aí, foram-lhe confiscados três computadores portáteis – um deles pertencente à sua mulher – e todas as suas chaves USB. Segundo declarações do seu pai, João Rodrigues de Carvalho ao Maka Angola, a polícia não apresentou qualquer mandado de busca.

No dia seguinte, domingo, as autoridades detiveram Domingos da Cruz – professor universitário e antigo jornalista – na cidade de Santa Clara, província de Cunene. Esta detenção foi feita na zona de controlo de passaportes da fronteira com a Namíbia. Domingos da Cruz fora o orador principal nos três workshops dos últimos sábados, e usara o manuscrito do seu próximo livro, Ferramentas para Detonar a Ditadura, durante os debates que ocorreram durante estes encontros.

Na terça-feira, o advogado Walter Tondela acompanhou os seus clientes – Nito Alves, Luaty Beirão e Domingos da Cruz – durante um total de 15 horas consecutivas de interrogatórios.

“Do ponto de vista legal, discutir um livro sobre resistência pacífica não constitui crime de maneira alguma. O encarceramento destes jovens é um sério ataque à liberdade de pensamento”, denunciou o advogado.

Walter Tondela acrescentou ainda que “o procurador-geral alega que entre o material confiscado foram encontradas evidências de que estes jovens vêm trabalhando no sentido de depor o presidente”.

O Maka Angola foi ainda informado que, durante os interrogatórios, os detidos foram recorrentemente questionados sobre se teriam a intenção de depor o presidente e, em caso afirmativo, com que objectivo. Os jovens detidos terão respondido que em Angola não existe democracia e, por isso, lutam pela sua verdadeira instauração.

Outras detenções

Por falta de dinheiro para custear a despesa do transporte (US $3) que o levaria ao encontro onde ocorreram as referidas detenções, Raul Mandela, outro activista, não foi detido. No entanto, na segunda-feira de manhã, agentes do SIC foram a sua casa, tendo regressado por volta das nove da noite para uma busca. “Já tinha escondido o meu computador, por isso os agentes – que não tinham nenhum mandado de busca – confiscaram alguns panfletos que eu tinha feito contra o negócio do presidente estar a vender a nossa terra à China; a subida do preço dos combustíveis e o massacre dos fiéis seguidores de Kalupeteka no Monte Sumi, no Huambo”, relatou Raul Mandela ao Maka Angola. “Resisti à detenção e e disse aos agentes do SIC que poderiam voltar de manhã cedo para me prender; estarei preparado”, explicou o activista.

Ainda na segunda-feira, a polícia levou a cabo novas buscas e confiscou computadores na casa de um antigo activista, o jovem Carbono Casimiro, enquanto este se encontrava ausente, a trabalhar. A polícia declarou que as buscas estavam a ser feitas no contexto de investigações a crimes contra a segurança do Estado, o planeamento de rebelião e a tentativa de assassinato do presidente Dos Santos.

O SIC e os agentes de segurança do Estado, segundo consta, continuam a perseguir outros activistas. Na manhã (quarta-feira) prenderam Osvaldo Caholo, de 26 anos, tenente da Força Aérea e activista. A sua família reportou que alguém teria tocado à campainha do seu apartamento, na Centralidade de Cacuaco, para o informar de que a janela do seu carro estava partida; quando Osvaldo Caholo saiu para confirmar esta informação, foi imediatamente preso e arrastado para um carro com vidros fumados. Meia hora depois, os captores conduziram o detido ao seu apartamento, revistaram-no e confiscaram dois computadores, os telefones do casal e todos os livros que encontraram. A família confirmou que os agentes não exibiram qualquer mandado de busca.

As tácticas de sempre

As tácticas usadas contra jovens activistas e os protestos que estes organizam já têm tradição. Momentos houve em que o simples facto de criticar o presidente publicamente era o suficiente para provocar uma reacção brutal por parte da sua guarda pretoriana. É disso exemplo a morte de Arsénio Sebastião “Cherokee”, lavador de carros, a 22 de Novembro de 2003. “Cherokee” morreu afogado no cais do Mussulo, em Luanda, às mãos de guardas presidenciais, por ter cantado um rap do músico de hip-hop MCK, no qual se critica a liderança do presidente.

“Quem fala a verdade vai p’ó caixão/ que raio de democracia é essa?”, canta MCK. Enquanto transeuntes protestavam contra o espancamento de Arsénio, a guarda presidencial chamou reforços e, pouco depois, chegaram ao local outros 45 membros desta unidade. O chefe da operação ordenou a alguns dos seus homens que arrastassem o jovem para a água, onde foi morto por afogamento. À época, conforme o autor reportou, o mandante justificou perante as testemunhas a sua autoridade e legitimidade para actuar de tal forma, alegando que Cherokee "era um bandido e falou mal do presidente; tinha de ser abatido”.

Esta mentalidade ressurgiu em 2011, altura em que muitos jovens activistas começaram a protestar de forma mais sistemática. Vários dos detidos, no sábado, têm sido alvos regulares do regime. Alguns afirmam ter sido torturados por diversas vezes.

O regime tem investido na tomada de medidas desproporcionais, ao ponto de ter criado aquilo que as suas vítimas classificam de “esquadrão do terror”, com o objectivo de espalhar a violência contra jovens activistas. A 9 de Março de 2012, uma milícia pró-governamental, controlada directamente pelo MPLA e que contava com o envolvimento de agentes da polícia, procedeu a uma rusga na casa de Carbono Casimiro e agrediu brutalmente vários activistas que ali se encontravam reunidos, a preparar um protesto contra o presidente Dos Santos, que teria lugar no dia seguinte. Na tentativa de protesto, a 10 de Março, Luaty Beirão e líder do Bloco Democrático Filomeno Vieira Lopes, foram violentamente atacados, tendo os agressores infligido a ambos golpes na cabeça.

O Grupo de Cidadãos Angolanos pela Paz, Segurança e Democracia na República de Angola, teve grande destaque e publicidade na Televisão Pública Angolana (TPA) e na Rádio Nacional de Angola (RNA), tendo assumido a autoria dos ataques. Várias figuras afirmam que esta suposta organização terá sido uma criação do governo assim como o “esquadrão de terror”, também conhecido por "kaenches". O referido grupo garantiu a intenção de usar violência contra quem se atrevesse a desafiar o regime ou o presidente.

Destemidos, os jovens activistas voltaram a reunir-se em casa de Carbono Casimiro a 23 de Maio de 2012, com o objectivo de organizar um novo protesto contra o presidente dos Santos.

A milícia cumpriu a sua promessa e invadiu novamente a casa de Casimiro, tendo os jovens sido brutalmente atacados com machetes e barras de ferro por 15 membros deste grupo, que também ameaçaram com armas de fogo aqueles que ofereceram resistência. Mbanza Hamza, um dos oradores no recente encontro de sábado e que também se encontra detido, sofreu graves ferimentos na cabeça e a omoplata quebrada durante esse ataque. 

A 23 de Novembro de 2013, a Unidade de Segurança Presidencial (USP) – órgão directamente responsável pela segurança do presidente, da sua família e do Palácio Presidencial – também entrou em cena. Os seus membros prenderam oito activistas da CASA-CE, que se encontravam a colar cartazes nas paredes do Estádio dos Coqueiros. Os soldados levaram os detidos para a unidade da USP, junto ao palácio presidencial.

Para “dar o exemplo”, um dos guardas do presidente executou, com dois tiros nas costas, Manuel Hilberto de Carvalho Ganga, engenheiro civil. Os cartazes que os activistas colavam, e que deram origem às detenções e ao assassinato, reclamavam justiça no caso dos activistas Alves Kamulingue e Isaías Cassule, executados a 27 e 29 de Maio de 2012 por Membros da Polícia Nacional, do Serviço de Inteligência e Segurança de Estado (SINSE) e da  milícia sob controlo do MPLA.

O corpo de Isaías Cassule foi deitado ao Rio Dande, numa zona infestada de jacarés. Os activistas encabeçavam um grupo de antigos guardas presidenciais que queriam realizar uma manifestação para exigirem enquadramento profissional ou pensões.

Durante os últimos quatro anos, forças de segurança, serviços de segurança, milícias armadas e até os tribunais têm sido mobilizados para silenciar o  auto-denominado movimento revolucionário, constituído por vários grupos  de jovens que têm ousado exigir publicamente a demissão do presidente.

As estratégias usadas têm incluído o recurso a violência brutal, a raptos e a tortura; desaparecimentos forçados e homicídios; agentes de informação infiltrados; intimidação, ameaças, perseguições e vigilância; subornos; pressão exercida sobre as famílias dos activistas, seus empregados e escolas dos seus filhos; propaganda nos media alegando conspirações e o envolvimento da oposição, em particular a UNITA; distribuição de panfletos “incriminatórios” dos protestantes e abusos do processo legal com vista a conseguir condenações e aprisionamentos, na sua maioria baseados em infracções falsas. A CIA e os países ocidentais também têm sido mencionados como promotores das manifestações contra o  presidente.

Na opinião de alguns observadores, a recente táctica de acusar activistas de crimes severos contra a segurança do Estado e, consequentemente, confiscar o seu material informático é uma manobra com vista a permitir às autoridades rastrear as suas redes de contactos. Isto, por sua vez, permite ao aparelho de segurança usar o longo período de prisão preventiva permitido por lei (90 dias, prorrogável) para alargar a sua teia de detenções e fabricar provas de uma conspiração.

Quem são os criminosos e quem são as vítimas?

As graves acusações  contra os jovens, de preparação de um golpe de Estado, abrem caminho para que os media – detidos e controlados pelo Estado – e os serviços de informação disseminem um clima de medo que, por sua vez, serve para justificar uma repressão generalizada em nome da manutenção da paz. 

A oportunidade desta operação relaciona-se directamente com a crise económica que se vem acentuando e que ameaça a estabilidade do regime. Num relatório interno recente, publicado pelo semanário português Expresso, a petrolífera Sonangol admite estar tecnicamente falida, como já acima referido.

A Sonangol é o órgão vital do sistema de corrupção do presidente e seu séquito, através do qual controla o poder. 

Dos Santos pode autoproclamar-se um democrata. É evidente que os seus seguidores mais fiéis não são capazes de imaginar um futuro aceitável em Angola para além e depois da sua presidência. Temem que o fim da era Dos Santos represente também o fim do seu partido, o MPLA.

Para alguns analistas, este mais recente gesto de repressão evidencia que o regime não está já a actuar enquanto estrutura coerente e sim através de ataques ad hoc organizados por homens de confiança do presidente contra os seus críticos e opositores. Seria uma forma de contornar a questão de terem (da mesma forma que o presidente) esbanjado o dinheiro do petróleo angolano e hipotecado o futuro do país, e de serem obrigados a admiti-lo. A violência é o seu último recurso, e talvez a sua melhor hipótese de garantirem a sua posição enquanto donos  de Angola.

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