Comandantes da Polícia Torturam Laurinda Gouveia
Um oficial da Polícia Nacional tirou o telemóvel a Laurinda Gouveia, de 26 anos, e outro deu-lhe uma bofetada. Arrastaram-na pelos cabelos, por poucos metros, até a um patrulheiro da Polícia Nacional. Laurinda cometera um crime de lesa-pátria ao tentar manifestar-se para exigir a demissão do presidente José Eduardo dos Santos. O que se segue é o seu calvário.
Estudante do segundo ano do curso de Filosofia da Universidade Católica e vendedora de churrasco, no passado dia 23 de Novembro, pelas 16h00, Laurinda Gouveia deslocou-se ao Largo da Independência, em Luanda, com mais três activistas. Enquanto os seus companheiros tentavam chegar ao monumento de Agostinho Neto, a jovem tirava fotos da “retaguarda”.
“O patrulheiro da Polícia Nacional levou-me para a Escola 1º de Maio [Instituto Médio Comercial de Luanda], junto ao Largo. Seis comandantes da polícia e oficiais à paisana do SINSE fizeram um círculo para torturarem-me, enquanto os subordinados assistiam”, conta Laurinda, ainda acamada.
“O comandante disse-me: ‘Oh, sua puta de merda, você está aqui a fazer confusão.’ Desferiu-me um soco entre os olhos e os outros começaram a pancadaria contra mim”, explica a jovem.
Segundo a vítima, para que não se pudesse defender dos golpes, um dos oficiais algemou-a pelas costas. Os comandantes atingiram-na continuamente com mocas, porretes e cabos de aço, trocando entre si os instrumentos de tortura, à medida que lhe iam batendo.
Laurinda Gouveia urinou três vezes durante o espancamento. “Eu implorava por perdão. Um comandante disse-me ‘você não vai se mijar só, vai ter que se cagar aqui com a porrada’”, conta.
Passaram a assestar-lhe mais golpes de moca na cabeça. “Um oficial do SINSE perguntou-me se eu não o reconhecia. Eu disse que não. Então, mandou buscar uma barra de ferro. Pisou-me nas pernas e pôs-se a espancar-me com a barra de ferro nas costas. Ele dizia que a barra de ferro tinha gindungo”, revela a vítima.
Desesperada, Laurinda Gouveia rebolou para debaixo da viatura que se encontrava ao lado: “O comandante ordenou ao motorista para arrancar com a viatura e atropelar-me. Saí. Viraram-me de barriga para baixo e puseram-se a espancar-me no rabo com uma moca, durante muito mais de 50 vezes. Depois fizeram o mesmo nas plantas dos pés e de seguida na cabeça”.
Segundo Laurinda Gouveia, um agente da polícia filmou pormenorizadamente a tortura a que foi submetida. Conta ter desmaiado várias vezes durante as duas horas de espancamento ininterrupto.
“Um outro comandante agarrou-me pelos cabelos, começou a arrastar-me e mordi-lhe uma mão”, revela a activista. Enfurecido, “disse-me ‘não sei se tens sida, agora é que vais dançar!’. Esse comandante pegou num carregador universal de telemóvel, com várias saídas, e começou a açoitar-me nos olhos. Um outro comandante disse-lhe para ter cuidado para não estragar o carregador.”
De tão violenta pancadaria, Laurinda Gouveia acreditou que iria morrer ali mesmo: “Era para me matarem, mas um dos comandantes disse que essa porrada é apenas o princípio: ‘Se voltares aqui vamos te matar.’”.
“’Essa puta vende churrasco ali no Bairro Cassenda, agora vem para aqui a querer desestabilizar o país’, disse-me um dos oficiais do SINSE, fazendo-me ver que conhecia bem a minha casa”, denuncia Laurinda Gouveia.
Os “comandantes”, quando a jovem lhes parecia já moribunda, largaram-na defronte da União dos Escritores Angolanos, no Largo das Escolas, a menos de 300 metros do local de tortura.
Laurinda Gouveia, torturada por comandantes da polícia, em dias mais felizes.
Coincidência ou não, pelo local passou uma ambulância, que a socorreu e a transportou para o Hospital do Prenda. A mesma ambulância levaria também outro activista, cuja narrativa se segue.
Baixa de Kassanje – outra vítima de tortura
Oldair Fernandes “Baixa de Kassanje”, de 24 anos e técnico de informática, revive também os momentos de tortura por que passou quando, em companhia de Laurinda Gouveia e dois outros jovens, chegou ao Largo da Independência.
“Os três que tentámos passar a barreira policial junto ao largo fomos cercados por 20 agentes policiais. Foi o próprio comandante Francisco Notícias [comandante do Distrito da Maianga, da Polícia Nacional] quem me agarrou, enquanto cinco agentes do SINSE me agrediam com barras de ferro. Depois levou-me para dentro da Escola 1º de Maio”, revela Baixa de Kassanje.
Já no interior da escola pública, “mais de dez homens torturaram-me com barras de ferro e paus. Estavam com muita raiva. Desmaiei algumas vezes”, conta.
Num momento de distracção dos seus algozes, Baixa de Kassanje meteu-se em fuga e entrou para uma viatura-táxi, um Toyota Hiace. “Os agentes partiram os vidros do Hiace, mas o motorista foi corajoso e não parou. Levou-me até uma certa distância, onde achou que eu estaria em segurança, e deixou-me”, prossegue.
O activista acrescenta que o superintendente Francisco Notícias terá enviado a ambulância “para verificar se tínhamos morrido ou não”. A ambulância encontrou-o onde o taxista o deixara.
No Hospital do Prenda, passaram a noite a soro. Os activistas denunciam que não receberam qualquer tratamento médico, não lhes sendo sequer administrado um analgésico: “Puseram-nos no soro durante a noite, e foi tudo.”
Agentes do SINSE e da Polícia Nacional permaneceram ao lado dos activistas, tentando interrogá-los a ambos: “Estavam lá a controlar-nos, mas não respondi às perguntas deles. O Nito Alves, que estava lá a apoiar-nos, de vez em quando gritava com eles para se afastarem de nós”, conta Baixa de Kassanje.
Tanto Laurinda Gouveia como Baixa de Kassanje encontram-se acamados, temerosos e sem recursos para assistência médica adequada.
“O SINSE continua aqui a rondar a minha casa e a interrogar os meus vizinhos. Eles continuam a vigiar-me”, afirma Baixa de Kassanje.
Maka Angola contactou o Comando Provincial da Polícia Nacional em Luanda, para obter uma versão oficial dos acontecimentos. O encontro está marcado para a próxima quarta-feira, no referido comando.
A violência do dia anterior
No dia anterior, a 22 de Novembro, dois grupos de manifestantes, com pouco mais de 20 jovens cada, tentaram uma nova estratégia. O primeiro concentrar-se-ia no Largo da Independência e o segundo marcharia em direcção ao Palácio Presidencial, na Cidade Alta, ambos para exigirem a demissão do presidente. Pelo meio, surgiu um terceiro grupo de desmobilizados a reivindicar pensões.
No total, 12 dos jovens que se dirigiam ao Palácio foram perseguidos entre a Maianga e a Assembleia Nacional, por volta das 11h00, entre os quais Raúl Mandela, David Salei e Beimani Residentível. Não tendo chegado ao palácio, os jovens reagruparam-se no Largo da Independência, onde já se encontravam Red Miguel, Álvaro Binga, MC Life, Dago Nível Intelectual e outros.
A polícia não se fez rogada e deteve-os. Para além da surra aplicada a cada um dos detidos, com cabos de aço, bastonadas e pontapés, os agentes policiais levaram os jovens para fora da cidade. No município da Cacuaco, foram sendo libertados, um por um, a distâncias consideráveis, para que não se pudessem encontrar.
Segundo explicações de Osvaldo Manuel João ao Maka Angola, “os polícias tiraram-nos os telefones, ficaram com os nossos documentos pessoais e roubaram-nos todo o dinheiro que tínhamos. Quem ordenou a repressão no local foi o comandante Francisco Notícias”.
O jornalista Sedrick de Carvalho, que se encontrava ao lado do comandante Notícias, explica que inicialmente o comandante Notícias ordenara aos seus homens para não deterem nenhum activista. No entanto, viu agentes aos empurrões com uns jovens, e um destes a desferir um soco a um policial. Nessa altura, “o comandante ordenou o confisco do meu telemóvel e aí começou a pancadaria”, conta Sedrick de Carvalho, cujo telefone a polícia reteve por cerca de uma hora.
Em concertação com os jovens, um grupo de algumas dezenas de veteranos de guerra também tentou convergir nas imediações da Maianga para a marcha contra o palácio. “Como eles têm a técnica militar tentaram reagir contra a Polícia de Intervenção Rápida (PIR). Os Ninjas [PIR] não conseguiram humilhá-los [aos veteranos] como têm feito connosco, com pancadaria a torto e a direito”, desabafa Raúl Mandela. O activista explica que as forças de segurança não detiveram nenhum dos veteranos.
Segundo o seu testemunho, Raúl Mandela foi agredido por agentes policiais com barras de ferro, tendo ficado com o braço direito todo inflamado.
Mas há um outro detalhe curioso. O governo provincial autorizara uma marcha de professores, em comemoração do Dia dos Professores, e outra da juventude do MPLA (JMPLA) para a mesma hora. Os manifestantes anti-regime, segundo Raúl Mandela, iludiram a segurança vestindo camisolas da marcha dos professores, enquanto outros também vestiram camisolas e bonés da JMPLA, mas mantendo as suas reivindicações.
A estratégia oficial de realização de manifestações pró-regime para abafar as manifestações anti-regime foi malsucedida por causa da infiltração. “Quando a polícia se apercebeu, teve de acabar com todas as manifestações. Estávamos infiltrados”, conta Raúl Mandela.
Manifestações, ou jogo do gato e do rato
Desde 2011 que funciona assim: um grupo de jovens anuncia um protesto antigovernamental, as forças policiais e de segurança desdobram-se a detê-los, a torturá-los e a dispersá-los. No fim-de-semana passado, a 22 e 23 de Novembro, a tragicomédia repetiu-se. O que ganham os jovens com a provocação e o que ganham as autoridades com a repressão? Qual é o real valor da Constituição? Eis as questões que importa analisar.
No domingo, vários jovens revolucionários juntaram-se na romaria ao Cemitério da Sant’Ana, em Luanda, organizada pela CASA-CE e liderada por Abel Chivukuvuku, em memória de Manuel Hilbert Ganga. Foi o primeiro aniversário da execução do jovem activista da CASA-CE pela segurança presidencial, a 23 de Novembro de 2013. Essa marcha teve a protecção da polícia e decorreu de forma pacífica.
As tentativas de protesto antigovernamental são, invariavelmente, manifestações contra o presidente da República José Eduardo dos Santos. Desta vez, como em várias ocasiões anteriores, os jovens exigiam a sua demissão.
Porquê o foco sobre o presidente? A sua longevidade no poder, 35 anos, é apenas um pormenor. A questão fundamental é a Constituição de 2010, que aboliu o governo como um dos quatro órgãos de soberania. A nova Constituição consagra apenas três órgãos soberanos, o presidente da República, a Assembleia Nacional e os tribunais. Por sua vez, o presidente da República é o chefe do executivo, o nome dado ao governo que ele forma apenas como um órgão auxiliar do seu poder absoluto.
No entanto, o presidente sempre se assumiu como um líder oportunista. Se algo corre bem na governação, todos os louros são para si. O quotidiano da má governação, da impunidade, da corrupção, da falta de empregos não é da sua responsabilidade. É irresponsável de todo.
É nesse processo de negação sobre a realidade do país que o MPLA, a propaganda e a repressão servem de principais órgãos auxiliares do presidente.
Para o MPLA, estes jovens são a semente de forças ocultas que podem desestabilizar os seus 39 anos de poder em Angola. Para o MPLA, o angolano comum não tem pensamento próprio, não sente fome, não tem noção da realidade em que vive. O angolano que pensa, mas não coloca o seu saber ao serviço do MPLA, é perigoso, é um agente do mal. Hoje, a essência do MPLA é pouco mais do que uma associação de malfeitores dedicada à pilhagem do país, à destruição da cidadania, da moral e dos bons costumes que devem nortear a conduta de uma sociedade.
Hoje, patriota é aquele que apoia e vive de esquemas de corrupção, venera a incompetência, segue obtusos como o Bento Bento e aplaude delinquentes como o Bento Kangamba, a geração actual de líderes do MPLA.
A propaganda, difundida pela TPA, RNA e Jornal de Angola, os órgãos de informação do Estado servem para estupidificar o angolano comum. Aqueles que se recusam a ser estupidificados e exigem os seus direitos constitucionais, de forma plena, então, podem levar porrada à vontade. Não são bons angolanos.
Mas o que ganham os jovens com manifestações? Provam, sobretudo, a insustentabilidade democrática do regime. Como pode uma mão cheia de jovens marchar para o palácio e tirar o sono ao presidente, que tem um indescritível aparato de segurança? O medo que os principais dirigentes do país têm do povo é maior do que a confiança que depositam no seu aparelho repressivo.
E o que ganha o regime com os espancamentos? Dá continuidade à sua tradição de violência como forma de manutenção de poder. É uma fórmula que tem usado com indiscutível sucesso.
Há dois obstáculos que a sociedade tem de ultrapassar para fazer valer os seus direitos constitucionais de forma unida: a corrupção e a ausência de uma liderança visionária que possa mostrar ao povo o caminho do bem.