Senhor Feudal e Presidente: A Dupla Personalidade de Dos Santos

No seu discurso sobre o Estado da Nação, proferido em 15 de Outubro passado, o presidente da República, José Eduardo dos Santos incentivou a acumulação primitiva de capital em África.

Segundo o presidente, referindo-se à emergência e desenvolvimento do capitalismo nos países ocidentais, “a acumulação primitiva de capital que tem lugar hoje em África deve ser adequada à nossa realidade”.

É fundamental, para melhor entendimento do discurso e da mentalidade do presidente, começar por rever o conceito de acumulação primitiva de capital, conforme definido por Karl Marx. O presente texto contextualiza a referida teoria no momento actual. E, por último, desmistifica as intenções do presidente José Eduardo dos Santos para Angola e África, em geral.

De acordo com Karl Marx, a acumulação primitiva de capital foi o processo ocorrido na Europa dos Séculos XVI a XVIII, baseado na expropriação violenta de terras, de modos de produção familiar e artesanal e bens de camponeses e artesãos. Esse processo, de separação da maioria dos seus meios de produção, forçou a que estes, particularmente camponeses, se sujeitassem à condição de assalariados da minoria usurpadora que, por essa via, passou a acumular capital e riqueza. Assim emergiu o capitalismo por via do  antagonismo entre as classes criadas por esse processo de enriquecimento violento, a saber, a burguesia e o proletariado.

Outro aspecto fundamental da acumulação primitiva de capital na Europa, conforme os estudos marxistas, assentou no tráfico de escravos e no saque das colónias ultramarinas, particularmente África.

Para o efeito, Marx também denunciou, como parte da acumulação primitiva de capital, a legitimação da pilhagem e da violência através de actos legislativos e outros processos governativos destinados a proteger a classe de usurpadores.

Esse período também gerou, na referida Europa, invenções e contributos científicos que alavancaram a revolução industrial. No mesmo período, também surgiram extraordinárias correntes de pensamento. Por exemplo, no século XVIII,  o movimento intelectual, que ficou conhecido como Iluminismo e se propagou a partir de França, manifestava-se contra as injustiças sociais e afirmava as liberdades individuais através do poder da razão. Esse movimento opunha-se ao poder arbitrário tanto do Estado como da Igreja, aos seus abusos, saques e actos de intolerância, e contribuiu, de maneira significativa, para o estabelecimento do republicanismo.

As sociedades ocidentais acabaram por se desenvolver através de antagonismos radicais, muitas vezes violentos, mas que acima de tudo se afirmavam na geração de riqueza através da produção, do investimento na ciência e na criatividade humana, mesmo à custa da subjugação de outros povos. O debate antagónico de ideias e a promoção das liberdades fundamentais para os seus cidadãos, assim considerados, constituíram os pilares para a democratização destes estados.

 Desmistificando o Discurso Presidencial

No seu discurso, o presidente referiu-se à acumulação primitiva de capital na sua tentativa de justificar a corrupção sem limites do seu governo como sendo apenas um processo de criação de riqueza. O presidente assumiu o manto do pan-africanismo para acusar as organizações não-governamentais (ONG’s) ocidentais de intimidação dos africanos que pretendem ser ricos. O presidente ignorou propositadamente as denúncias internas de corrupção contra o seu governo que são, de longe, mais graves e devidamente documentadas.

“Não há razão para nos deixarmos intimidar”, disse o Chefe de Estado.

Segundo o presidente “a acumulação primitiva do capital nos países ocidentais ocorreu há centenas de anos e nessa altura as suas regras de jogo eram outras. A acumulação primitiva de capital que tem lugar hoje em África deve ser adequada à nossa realidade”.

À partida, o presidente exige, ao Ocidente, as mesmas prerrogativas que algumas realezas europeias e senhores feudais outorgaram-se a si mesmos entre os séculos XVI e XVIII. Em síntese, arroga-se ao estatuto de dirigente de um Estado de Direito, justifica-se com os princípios do sistema capitalista nos seus primórdios, mas age como se fosse senhor de um feudo.

José Eduardo dos Santos demanda, em pleno século XXI, os poderes de vilania e a impunidade dos senhores feudais. Concita algumas lideranças africanas a dedicarem-se à pilhagem dos recursos dos seus país, à espoliação dos seus povos e à sua exclusão.

De forma contraditória, no mesmo discurso o presidente reclama também legitimidade para o seu alter ego do século XXI. Ou seja, há o José Eduardo dos Santos que exige ser tratado como senhor feudal da Idade Média ou então como burguês proprietário e explorador, como referido na luta de classes de Karl Marx. Há também o José Eduardo dos Santos que reclama legitimidade como presidente democraticamente eleito e moderno, ao nível do século XXI.

Essa dupla personalidade permite-lhe, ao mesmo tempo que se assume como senhor feudal, afirmar, sobre o saque de bens públicos e a corrupção, que “as nossas leis que regulam essas matérias são claras e devem continuar a ser aplicadas com rigor”.

A confusão que o presidente faz entre o saque, o capitalismo e o Estado de Direito e democrático alerta para a gravidade do seu estado mental. Conselheiros não lhe faltam. Anos atrás, um porta-voz do MPLA afirmou empiricamente que 95 porcento dos intelectuais angolanos são membros do seu partido. O MPLA, também presidido por dos Santos, está no poder há 38 anos.

Mais grave ainda, o próprio presidente é um produto da violenta doutrinação Marxista-Leninista que vigorou em Angola até finais da década de 80 e derramou muito sangue angolano.

No seu discurso, o presidente não explicou como o povo angolano e os africanos, de um modo geral, podem encontrar benefícios em serem pilhados e espoliados pelos seus próprios líderes.

O chefe de Estado também não apresentou nenhuma história de sucesso sobre um país africano que tenha sido saqueado e o povo violentado pelos seus próprios líderes e tenha gerado uma elite produtiva.

No entanto, o presidente culpou o Ocidente por, através  das suas “campanhas de intimidação”, impedir os africanos de concorrer, a nível local, com as suas multinacionais.

“Um simples levantamento dos resultados das empresas americanas, inglesas e francesas no sector dos petróleos ou das empresas e bancos comerciais com interesses portugueses em Angola mostrará que eles levam de Angola todos os anos dezenas de biliões de dólares”, afirmou o presidente.

Com essa declaração, o presidente demonstrou a importância que confere à soberania nacional e à legislação angolana em vigor. Manifestou também a sua tripla personalidade política. Senão vejamos.

Todos os contratos petrolíferos são assinados mediante autorização presidencial. Há leis sobre importação e exportação de capitais. O presidente eventualmente assume que a soberania nacional está comprometida porque autoriza a assinatura de contractos mediante coacção internacional ou por incapacidade política de defender os interesses dos angolanos.

Com a ambiguidade que lhe é característica, o presidente também não informa se as dezenas de biliões de dólares levados de Angola, pelas petrolíferas, são-no de forma ilegal ou de acordo com os contratos que autorizou. Em qualquer dos casos, o presidente é o principal responsável  pelo destino dado a esses biliões, quer pela sua autorização dos contratos quer pela sua responsabilidade suprema na manutenção da lei e da ordem.

Sobre os bancos comerciais, o monólogo presidencial é autocrítico. Os dois principais bancos com grandes capitais estrangeiros e concorrentes entre si, o BFA e o BIC, têm ambos, como sócia com participação qualificada e na sua administração, a filha do próprio presidente José Eduardo dos Santos, a Isabel. Se estes bancos exportam capital de forma ilícita, então a principal responsabilidade é da própria família presidencial. Se o fazem de forma legal, então o presidente levantou um falso problema e, se o fez, deve esclarecer as suas intenções.

Estranhamente, o presidente não se referiu à China que, silenciosamente,  está a colonizar Angola e a dominar a soberania nacional. A China leva metade do petróleo angolano e a Sonangol, a principal empresa pública, é hoje uma marca à mercê de negócios obscuros entre chineses e algumas figuras da presidência.  O presidente não explicou como, para além dessas práticas, a parceria com a  China e a pilhagem e exploração a que se propõem a médio e longo prazo, enriquecerá a burguesia angolana

 

Conclusão

O presidente deve apresentar à nação o seu plano político e sócioeconómico  sobre o modelo de acumulação primitiva de capital que tem estado a promover, provando que o mesmo pode ocorrer sem ilicitude.

Ao não fazê-lo e ao não retratar-se das suas afirmações, qualquer cidadão angolano terá todo o direito legítimo de considerá-lo apenas como um senhor feudal.

A arrogância de José Eduardo dos Santos é inadmissível e deve ser repelida com o vigor da dignidade e da inteligência dos patriotas, que as campanhas de intimidação e de corrupção do regime não conseguiram neutralizar ou destruir.

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