A Promiscuidade do Presidente da República
Em Agosto passado, enderecei uma carta ao presidente da República cujo conteúdo denunciava graves actos de ilegalidade cometidos pelo procurador-geral da República, ao acumular esta função com a de sócio-gerente de algumas empresas privadas.
Vários cidadãos me têm perguntado sobre o silêncio do chefe de Estado e do Governo sobre as referidas denúncias. Tenho respondido que, da parte do presidente da República, não se pode nem se deve esperar qualquer reacção positiva contra a corrupção e em devesa do respeito pelas leis em vigor. Tenho argumentado que José Eduardo dos Santos personifica ele próprio a promiscuidade, que simultaneamente denuncia como o pior mal do seu Governo. Também tenho afirmado que o desrespeito pelas leis estabelecidas é uma constante no quotidiano do presidente.
Face a essas interrogações, apresento, numa breve abordagem investigativa, as práticas da Fundação Eduardo dos Santos (FESA), com destaque para o estudo de caso sobre o comportamento do presidente da República em relação aos órgãos de soberania, à legislação em vigor e à corrupção.
Enquanto presidente da República, José Eduardo dos Santos exerce também as funções de patrono da sua fundação, uma entidade privada cujos órgãos sociais incluem membros do Governo, deputados à Assembleia Nacional, multinacionais e empresas públicas. A investigação revela as várias disposições legais que proíbem o uso dos poderes públicos para fins pessoais, os conflitos de interesse, o tráfico de influências e outros actos de corrupção ignorados de forma sistemática desde a constituição da FESA, em 1996.
Por que motivos a sociedade permanece impotente diante dos inúmeros casos de abuso de poder por parte de José Eduardo dos Santos? O presente texto procura enquadrar os actos do presidente no contexto da mentalidade colectiva que tem paralisado a sociedade: a corrupção generalizada. O texto questiona a legitimidade política e moral do presidente para continuar a dirigir o país, após 30 anos de poder, enquanto desrespeita as leis aprovadas pelo seu próprio regime e permite que a corrupção seja institucionalizada.
O Reinado de Dos Santos
Nos termos da Lei Constitucional, segundo o primeiro ponto do Artigo 65°, “o Presidente da República não é responsável pelos actos praticado no exercício das suas funções, salvo em caso de suborno ou de traição à Pátria.” Alguns juristas argumentam que a legislação angolana não tipifica o crime de suborno e que o estipulado sobre a traição não se aplica ao presidente. No entanto, como signatária do Protocolo contra a Corrupção da SADC, Angola supre, em termos legais, essa omissão, porque incorpora o protocolo como direito interno.
Assim, à irresponsabilidade atribuída pela Lei Constitucional, o presidente junta o seu livre arbítrio. O seu capricho é lei. Os juristas do MPLA, o partido no poder, vão ao extremo de interpretar publicamente todas as violações presidenciais à legislação em vigor como actos de soberania e de sabedoria política do seu líder.
O reinado de José Eduardo dos Santos, em 30 anos de poder, apresenta dois factores essenciais de sucesso. Primeiro, a imensurável acumulação de riqueza – de forma obscura e impune – por parte da família presidencial, do círculo restrito de governantes, generais das Forças Armadas Angolanas, altos comandantes da Polícia Nacional, a elite do MPLA e seus parceiros estrangeiros. Segundo, o controlo absoluto do poder político, económico e social através de uma teia de corrupção e de estratégias complementares de repressão.
Numa intervenção recente na Rádio Ecclesia, denunciei alguns casos concretos de corrupção envolvendo altas entidades do Estado. Referi-me à violação permanente das leis em vigor por membros do Governo e gestores públicos. Citei, de forma específica, o atropelo à Lei dos Crimes Cometidos por Titulares de Cargos Públicos e ao Regime Disciplinar do Gestor Público, que claramente proíbem os dirigentes de usar os seus cargos ou de se engajarem em negócios do Estado para benefícios pessoais, para além das benesses inerentes às suas funções.
Vários cidadãos me interpelaram sobre o assunto. No entanto, tenho notado que, de modo geral, a sociedade ainda não está preparada para enfrentar a realidade, a verdade. As pessoas sentem-se mais ofendidas, e muitas vezes tornam-se mais hostis, contra quem expõe a verdade, à vista de todos. Esse é um dos efeitos da corrupção generalizada e não do medo da repressão. É o fanatismo da vida fácil.
Apesar do saque do património do Estado ser desenfreado, grande parte da sociedade prefere alienar-se, mantendo a ilusão de que os esquemas quotidianos de corrupção para a sobrevivência são actos de benevolência do regime.
“Roubam, mas também deixam roubar.” Esta parece ser a justificação dos sectores mais esclarecidos da sociedade sobre o comportamente actual dos governantes. O medo que as pessoas tanto evocam para explicar a impotência cívica da sociedade não é senão o de perder posses ou benefícios potenciais através de cumplicidades institucionais, partidárias e familiares. Esta é a condição dominante entre os cidadãos conscientes da realidade e capazes de dinamizar mudanças de comportamento. É assim a classe média angolana, sustentada pelo oportunismo.