O Estado e a Religião em Angola
A negação do reconhecimento oficial do Islão como uma das confissões religiosas instauradas em Angola pode criar a ideia de que o Estado angolano é adepto da islamofobia.
Os estereótipos que associam o Islão à imigração ilegal, ao terrorismo e a práticas que ameaçam a cultura nacional têm sido amplamente difundidos pela comunicação social angolana, sobretudo por via da divulgação de opiniões emitidas por entidades das esferas política, institucional e eclesiástica.
Na realidade, a relação entre o poder e a religião, em Angola, desde a independência, foi sempre marcada pela intolerância política, a ambivalência e a co-optação, tanto de forma combinada como alternada.
Logo após a celebração da independência, o ateísmo marxista-leninista instaurado no país serviu de justificação para que as confissões religiosas fossem alvo de perseguição.
No seu estudo sobre as posições políticas dos protestantes, no pós-independência, Benedict Schubert, descreve a estratégia do MPLA para o controlo das igrejas no período de partido-estado:
No seu projecto totalitário, o governo angolano tinha que encontrar uma via para enquadrar as Igrejas de tal modo dentro do sistema que se eliminava, pela sua inserção, o perigo que elas representavam por serem as únicas organizações de massa fora da iniciativa e do controlo directo do Estado.
Schubert nota que tem havido continuidade no propósito da política religiosa das autoridades com o objectivo claro de controlar as Igrejas, o que continua a verificar-se na actualidade.
A violência e a co-optação, por si só, não explicam o domínio do MPLA, no poder desde 1975, sobre as igrejas. A ambivalência sim.
O académico Homi Bhabha argumenta que a ambivalência é uma das estratégias mais eficazes, quer ao nível de discurso quer do ponto de vista físico, de poder discriminatório. Legitima os estereótipos como forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que sempre foi estabelecido, conhecido, e algo que deve ser repetido com ansiedade.
- É essa ambivalência que tem permitido, ao poder, o seu domínio político sobre as lideranças religiosas, através da oferenda de privilégios aos aliados e da exclusão dos que lhe são hostis. Por sua vez, os representantes das igrejas também são proactivos na manutenção da ambivalência no relacionamento entre o Estado e as igrejas, em conformidade com interesses individuais e colectivos do dia.
Historial
1975
- Logo após a independência, a 11 de Novembro, com a instauração do marxismo-leninismo, todas as confissões religiosas em Angola passaram a exercer as suas actividades sem reconhecimento oficial, ou seja, à margem da lei.
- A 20 de Novembro, o líder messiânico Simão Toco, líder da Igreja do Nosso Senhor Jesus Cristo na Terra, escreveu uma carta ao presidente Agostinho Neto, seu amigo e ex-colega, cujo conteúdo constituiu a primeira grande afronta de uma entidade religiosa ao poder instalado.
Todos os que seguem o camarada presidente Dr. Neto, bem como os que seguem o presidente Holden Roberto e o Dr. Savimbi, sendo vós os chefes do povo angolano, vão cumprindo as leis de poderem matar e todos quantos seguem o Simão Toco não podem nem poderão segurar em armas para matarem os seus irmãos nem tão pouco contribuírem dinheiro para a compra de armas. Mas sim poderão contribuir em comida para a alimentação do povo ( ).
A Igreja Tocoísta passou a ser perseguida, considerada subversiva e conotada com a FNLA, porque os seus fiéis provinham sobretudo do Norte de Angola, na altura região de influência do primeiro movimento de libertação do país. A outra igreja profética, de raiz africana, a Igreja Kimbanguista, também sofreu perseguições, sobretudo na mesma área geográfica (Uíge, Zaire e Cabinda). Os seus fiéis eram essencialmente da mesma região e muitas vezes confundidos com os Tocoístas. À semelhança da Igreja Tocoísta, também era considerada apoiante da FNLA e acreditava-se que tinha ligações ao regime de Mobutu, no então Zaire, sendo ademais entendida como agente do imperialismo.
1976
- Um resumo interessante do historial das Testemunhas de Jeová em Angola conta que, a 27 de Maio, o governo orientava publicamente os comités de acção e as organizações de massas, através de emissões de rádio, para que cumprissem uma vigilância cerrada às actividades das Testemunhas de Jeová.
A Igreja Católica fazia diariamente anúncios pela sua emissora de rádio no sentido de que as Testemunhas de Jeová eram subversivas, sublinha a narrativa de Carlos Cadi:
- A Igreja Metodista demarcou, logo em Novembro do mesmo ano, aquele que viria a ser o modelo de relacionamento entre a igreja e o Estado, privilegiado pelo MPLA. O bispo Emílio de Carvalho defendeu, nessa altura, o serviço cristão para a edificação de uma sociedade socialista e prestou, sem equívocos, a sua lealdade ao projecto totalitário da época. E assim a sua ala escapou às perseguições políticas.
1978
- A 25 de Janeiro, o presidente Agostinho Neto procedeu à extinção da Emissora Católica de Angola, Rádio Ecclésia, através do Decreto nº 5/78, que a integrou no aparelho de informação e propaganda do MPLA Partido do Trabalho. No entanto, através do Jornal de Angola, a propaganda oficial invocou, como argumento de extinção da Rádio, a transmissão de mensagens da facção do MPLA descontente com Agostinho Neto, a 27 de Maio de 1977.
Por sua vez, em sua defesa na altura, os bispos católicos recordaram que, logo após a independência, a Rádio Ecclésia fora obrigada pelo governo a estar ligada à Rádio Nacional, devendo transmitir a maioria dos seus programas, mesmo os de propaganda ateia.
Segundo os bispos, Em 27 de Maio de 1977, os autores da intentona apoderaram-se da Rádio Nacional. Por estar ligada a ela, a Rádio Ecclésia transmitiu sem culpa sua o que lhe mandavam de lá. Quando os responsáveis deram fé, cortaram a ligação. Isso não impedidiu que no dia seguinte a Rádio Ecclésia fosse ocupada manu militari.
- A 4 de Fevereiro, em discurso público, o MPLA manifestou publicamente parte da sua estratégia de separação da Igreja Católica em Angola relativamente à Santa Sé, no Vaticano.
- No cumprimento de uma directiva do Bureau Político do MPLA Partido do Trabalho, a Secretaria de Estado dos Assuntos Sociais emitiu um decreto de confisco dos donativos enviados a partir do exterior às igrejas e organizações religiosas, e destinados às populações. O Decreto Executivo nº 26/78 reafirmou, no preâmbulo do documento, a autorização do MPLA, de 8 de Março de 1978, que permitia às igrejas receber ajuda externa para apoio às populações. Em resumo, a fome começava a apertar e os problemas sociais a multiplicarem-se. As igrejas recebiam esse auxílio, o MPLA confiscava-o e as distribuía-o para seu benefício político.
- O governo sujeitou o reverendo Domingos Alexandre Coxe, da Igreja Kimbanguista, a dois anos de detenção no Campo de Reeducação da Kibala, sem culpa formada.
1980
- Através do Decreto Executivo 19/80, o Ministério da Justiça ordenou o registo de todas as igrejas existentes, num prazo de 90 dias.
1987
- Apesar do sistema de partido único, o MPLA promoveu, a 19 de Janeiro de 1987, na Banca do Militante da Secretaria de Estado da Cultura, a eleição dos novos representantes da Igreja. Queixas de fraude eleitoral e outros problemas internos agravaram a divisão da igreja.
- O MPLA-Partido do Trabalho orientou o reconhecimento de todas as igrejas e organizações religiosas existentes da República Popular de Angola. Com este preâmbulo, o Ministério da Justiça finalmente legalizou 12 igrejas e organizações religiosas, sete anos após a ordem de registo.
Através do Decreto Executivo nº 9/87, de 24 de Janeiro, o Ministério da Justiça deu cumprimento à orientação do MPLA, e reconheceu, por essa ordem, a Igreja Evangélica do Sudoeste de Angola, a Igreja Evangélica Congregacional de Angola, Igreja Católica, Igreja Metodista Unida, Igreja Evangélica de Angola, Igreja Evangélica Reformada de Angola, Igreja de Jesus Cristo sobre a Terra (Kimbanguista), Assembleia de Deus Pentecostal, Igreja Adventista do Sétimo Dia, Convenção Baptista de Angola e União de Igrejas Evangélicas de Angola.
- Um dos casos mais marcantes da violência política do governo contra as igrejas teve lugar a 15 de Fevereiro, quando forças militares e de segurança executaram 35 fiéis na Terra Nova, segundo informação prestada ao Maka Angola por uma alta entidade desta igreja.
1990
- Segundo relato pormenorizado de um membro das Testemunha de Jeová, Carlos Cadi, o governo mantinha encarcerado, de forma arbitrária, 300 fiéis dessa denominação religiosa, os quais invocavam a sua neutralidade e se recusavam a participar na guerra.
1991
- O Decreto Executivo Conjunto nº 46/91, do Ministério da Justiça e da então Secretaria de Estado da Cultura, conformou o processo de reconhecimento das igrejas e organizações religiosas à Lei Constitucional revista. Com a ampliação dos direitos fundamentais dos cidadãos, o decreto visava assegurar a liberdade e o exercício da religião e de consciência.
De acordo com o Decreto (Art. 4º), o reconhecimento não pode ser denegado, salvo nos casos em que as informações prestadas não sejam verdadeiras ou se a doutrina, as normas e o culto de confissão sejam contrários à ordem pública e ao interesse nacional.
1992
- Durante o ano, o governo reconheceu, através de vários decretos, um total de 29 igrejas, incluindo três facções da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo no Mundo Tocoístas, as Testemunhas de Jeová e a Congregação Cristã de Amizade Afro-Europeia.
- O presidente José Eduardo dos Santos abandonou o ateísmo, casou pela Igreja Católica e baptizou os seus filhos.
2003
- A 10 de Fevereiro, o governo, pela voz do então ministro da Comunicação Social, Hendrick Vaal Neto, acusou a Rádio Ecclésia de prática de terrorismo de antena. O governo manifestou-se agastado com a linha editorial crítica e independente da emissora católica, na altura.
Em reacção, a Rádio Ecclésia emitiu um comunicado que, de certo modo, resume também a ambivalência de vários dirigentes que professam crenças religiosas:
Ao insurgir-se contra a linha editorial da Rádio Ecclesia e ao chamar terrorista a esta estação, implicitamente está a chamar terrorista à Igreja Católica de Angola, da qual sua Excelência é membro, essa Igreja que durante os anos deu mostras de idoneidade, apesar de todos os constrangimentos.