Quem Disse Que És Cidadão?

Diz-se que a sabedoria popular tem imensa valia. As elites angolanas, assumindo-se como não fazendo parte do povo, pois “o nosso povo” é constituído por não-cidadãos, despreza a sabedoria popular – é mais in ficarem-se por dizeres que se referem exclusivamente ao novo léxico digital. Não sabem o que perdem.

De um camponês do Huambo, nos primeiros anos deste século, ouvi o seguinte: “Se para as pessoas de verdade, que vivem na cidade, não há medicamentos, como é que nós, na nossa aldeia, os vamos ter?” Anos depois, um conterrâneo seu afirmou, num encontro sobre problemas campesinos de várias províncias: “O nosso azar é não termos sorte.” Nada poderia expressar melhor o sentimento de exclusão que atinge grande parte dos povos do interior de Angola, que vem do passado longínquo e se prende com os níveis de pobreza.

Entre 1975 e 1990, o Estado assumiu a responsabilidade de prestar os serviços sociais básicos, principalmente nas áreas da saúde e da educação, a todo o povo. Cedo se deu conta de que essa tarefa não era possível, principalmente porque se sobrepunha ou dificultava o abastecimento dos cidadãos em bens de consumo essenciais. O Estado omnipresente rapidamente se transformou em omni-impotente, incapaz de concretizar a anunciada prestação de serviços. Com a agudização da guerra e a transição dos anos 90, entrou em crise.

A capacidade de resiliência e de dar a volta por cima ditou a emergência do sector informal: primeiro, com as tradicionais quitandeiras, depois, com os vendedores de bens roubados nos portos e nas ruas, com o serviço de transporte individual ou colectivo prestado por quem tivesse viatura, independentemente da sua condição social, mais tarde substituídos pelos “azulinhos” (que eu havia conhecido em Acra, Gana, no final dos anos 80, já com serviço terciarizado) e, finalmente, com a restauração e Os Trapalhões a servir de exemplo. O sector informal mostrava assim ao Estado que o seu modo de operar a economia era, pelo menos, mais eficaz do que a economia oficial na prestação de serviços. Rapidamente, o sistema informal alargou-se a outras áreas, como a saúde, a educação, o abastecimento de água, o câmbio de divisas, entre tantas outras.

Nos anos 1990 e 2000, tentou-se uma transição, e a paz chegou em 2002. O partido no poder mudou de ideologia, mas manteve o controlo e a captura do Estado, o autoritarismo, o leninismo, o centralismo democrático e a partidarização do Estado. Foi o tempo da acumulação primitiva do capital e da emergência dos políticos-empresários a todos os níveis, até entre os responsáveis de organismos públicos, que, na organização de eventos, recrutam os seus próprios serviços, sob o olhar silencioso de quem não podia permanecer em silêncio.

A economia de mercado que deveria substituir a economia planificada não funcionou, ou funcionou com muitas distorções, pois o mimetismo do MPLA continuou a imperar, permitindo que os políticos-empresários ditassem as regras de acordo com os seus interesses. À disfuncionalidade da economia de mercado formal contrapôs-se o crescimento da economia informal, que permitia aos cidadãos resolverem os seus problemas, o que, afinal, não constituía uma deformidade, pois correspondia aos ditames da sociedade informal, cujos actores não eram incorporados na economia formal. Ao mesmo tempo, a sociedade formal ia-se tornando-se excessivamente formal, com o tratamento por “excelências” e “doutores” por tudo e por nada, e o incontornável fato e gravata em clima tropical.

No início dos anos 90, vi numa rua de Luanda um polícia a pontapear um jovem que teria cometido uma pequena infracção. O rapaz reagiu com um “é assim que se trata um cidadão?”, merecendo de imediato uma resposta do polícia: “Quem te disse que és cidadão?”

Tentemos perceber como se chegou a esta situação.

A democracia foi-nos “sugerida” no início da década de 1990 como solução para os problemas que nos afectavam (guerra e subdesenvolvimento) e como condição para a paz e para o modelo de desenvolvimento neoliberal, apontado como solução para os fracassos até então verificados. Não nos foi “permitida” a escolha do modelo de democracia, nem fomos capazes de exigir a possibilidade de escolha. Foi uma “sugestão” que implicou a adopção da democracia liberal, numa altura em que padecia já de duas graves doenças – a diminuta representatividade e a fraca participação – e sem se considerar a realidade sociocultural do país, nem a possibilidade de se adoptarem ou adaptarem outras fórmulas que tivessem em conta aspectos essenciais como o nível pouco desenvolvido de construção da nação; a participação efectiva dos cidadãos; a representação da diversidade cultural ou regional; as experiências de gestão da vida comunitária. Enfim, sem se pensar numa possível “angolanização” da democracia. Quero com isto dizer, por exemplo, que, sendo a participação dos cidadãos nas decisões uma das principais razões da democracia, a sua construção em Angola deveria repousar no estudo e na incorporação das formas tradicionais de participação dos cidadãos na esfera pública. É o caso, por exemplo, do onjango, palavra de língua umbundu que equivale a mbanza na língua kimbundu ou kicongo, cota (lê-se tchota) na língua cokwe, entre outras. Trata-se deuma instituição muito comum e de fundamental importância na gestão da vida comunitária, na moderação dos poderes de liderança, na resolução de conflitos e na transmissão de valores aos jovens. Mediante algumas adaptações de correcção – como, por exemplo, conferindo-lhe um maior equilíbrio etário e de género – a incorporação do onjango no regime democrático angolano poderia melhorar e aumentar o nível de participação cidadã.

Nessa época, ao modelo económico neoliberal correspondia uma democracia representativa no estilo de Westminster, que se coaduna com sociedades relativamente homogéneas do ponto de vista cultural, religioso, etnolinguístico, com um processo de construção da nação mais ou menos consolidado. Foi esse o modelo “oferecido” aos políticos angolanos, que não o questionaram, como se a democracia não fosse um processo e se resumisse a um regime político parlamentar de tipo ocidental. Não se questionou, por exemplo, a possibilidade de se complementar a democracia representativa com a participativa e com outros modelos que tivessem preocupações com o consenso, que se afigura aconselhável em sociedades pluralistas e diversificadas do ponto de vista cultural, etnolinguístico e religioso, e em situações em que o processo de construção da nação se encontra pouco desenvolvido ou em que os grandes propósitos nacionais ainda não estão definidos ou assumidos. Do mesmo modo, não se deu importância ao poder autárquico – afinal, onde tudo deveria ter começado, por ser uma forma de se evitar o pernicioso “the winner takes it all”, que tanto tem prejudicado Angola. Na realidade, tal como foi concebido por Augusto Comte, o consenso pode constituir o cimento indispensável para a construção de novas estruturas sociais e de projectos nacionais abrangentes, sem que se tenha de subalternizar o contraditório e o conflito que alimentam os processos democráticos.

Em situações como a de Angola, um Estado democrático dificilmente pode assentar nos mesmos elementos em que assentam os Estados ocidentais. De acordo com Alan Fowler, o estilo de democracia hoje predominante no Ocidente assenta, de modo sintético, em três pilares fundamentais: uma base material, expressa por um sistema codificado de relações económicas e sociais de tipo capitalista; uma base organizativa, integrada por um conjunto de organizações e instituições formais, situadas entre a família e o Estado, inseridas numa lógica de mercado mas engajadas em determinadas lutas políticas; e uma expressão ideológica, assente na inviolabilidade dos direitos humanos individuais e na regulamentação da lei. Será que este estilo é aplicável a uma sociedade como a angolana de hoje, onde a base material é heterogénea, com elementos significativos do sector familiar e “informal”, ou pré-capitalista, pouco ou nada integrados numa economia de mercado “oficial” ainda pouco estruturada e com um sector petrolífero moderno dominante a funcionar em situação de enclave? Onde, do ponto de vista organizacional, o informalismo (ou o não-formalismo), o parentesco e a etnicidade desempenham um papel mais ou menos relevante no protagonismo das forças sociais, na organização da vida associativa e na expressão de interesses? Finalmente, onde, em relação à ideologia, se verifica a convivência do respeito pelos valores colectivos, pelas solidariedades, pelas normas de parentesco e pelas crenças mágico-religiosas com o individualismo, característico de uma sociedade e de uma economia abertas a (e influenciadas por) determinadas modernidades?

Noutra perspectiva, a produção das leis em Angola procura muitas vezes responder mais às pressões e agendas do exterior ou de grupos minoritários internos do que aos problemas económicos e socioculturais do país e à vida quotidiana, e dificilmente é aplicada, ao contrário do acontece em muitos países. Daí resultam ambiguidades e incoerências legais, com o relacionamento entre as instituições realmente existentes a fazer-se, frequentemente, à margem da Constituição e das leis, pois elas (as instituições e as leis) e os modos de governação não têm correspondência na prática quotidiana.

Como se pode alterar este estado de coisas?

É neste sentido que deve ser analisada a questão relativa à construção de um Estado de Direito. No nosso caso, não podemos pretender apenas a emancipação do Estado em relação ao partido no poder. Se é certo que o Estado-Nação e o Estado de Direito representam uma mais-valia incontornável de grande utilidade na construção de um projecto nacional em que todos os angolanos se revejam, face aos desvios, tensões e exclusões que vão ocorrendo, é natural que se coloquem algumas interrogações: de que direito se está a falar se a maioria da população não se revê nele? Será que, nesse contexto, há lugar para uma “africanização” do Estado? Esta é uma questão a que as ciências sociais e políticas em Angola têm de dar resposta.

A cidadania em Angola parece ser uma questão pelo menos tão central como a democracia, pois sem cidadãos conscientes dos seus direitos e deveres e activos não é possível construir uma “democracia participativa ou substantiva”, no dizer sempre actual do chileno José Bengoa. Ou seja, sem eles, nunca existirá uma democracia que sirva o processo de conquista e aprofundamento da liberdade dos cidadãos perante o Estado e de afirmação das diferenças culturais no seio da sociedade e de valores como a justiça, a solidariedade, o reconhecimento e a autodeterminação, enfim, uma democracia a partir da base, com ampla participação dos cidadãos.

Embora a ideia da cidadania seja hoje praticamente aceite como universal, o seu significado e o seu exercício não o são, particularmente na perspectiva dos excluídos. A teoria clássica liberal, que reconhece os direitos cívicos e políticos dos cidadãos como os “verdadeiros” direitos, porque promovem a liberdade dos indivíduos para agirem, é hoje desafiada pela ideia de que são os direitos económicos, sociais e culturais que dão substância aos primeiros, principalmente quando se trata de pobres e marginalizados. A cidadania deve ser vista, pois, como um conjunto de direitos e deveres conferidos por lei, mas também como o exercício desses direitos e deveres de acordo com as condições existentes. Neste sentido, a construção da cultura democrática, a democratização das instituições e dos partidos ou a refundação destes à luz da realidade e das teorias modernas de inclusão, tornam-se obras impossíveis sem a consciência e participação dos cidadãos. Só estes poderão conceber uma nova Constituição simultaneamente mais moderna e mais africana e um desenvolvimento endógeno e com base nos recursos internos, ou seja, mais sustentável e duradouro.

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