O Cidadão como Fundamento e Limite do Poder

Decorreu hoje, no Memorial Dr. António Agostinho Neto, em Luanda, a “Conferência sobre a Organização do Estado em Angola”. O evento – o primeiro de vários do género – teve o “intuito de pensar a futura organização do Estado” e encontrar “caminhos para lá das vontades pessoais, do livre-arbítrio e da fulanização exacerbada que tomou conta do debate público”, “num esforço conjunto para discutir ideias e lançar, finalmente, um Estado que corresponda às necessidades e expectativas da população”. Aqui apresentamos a comunicação de Rafael Marques de Morais.

Ilustres presentes,

Gostaria, antes de mais, de fazer uma breve incursão sobre as localidades de Cazombo e Nzeto, que são bons exemplos do estado actual do país, dos seus processos de tomada de decisões políticas e do exercício da cidadania.

Recentemente, visitei Cazombo, a sede da nova província do Moxico Leste. É uma localidade sem infra-estruturas básicas, sem água nem luz. As delegações das autoridades tradicionais da República Democrática do Congo e da Zâmbia, convidadas para a entronização da Rainha Nyakatolo, tiveram de ficar hospedadas numa escola, por falta de acomodação local. Como privilégio, fiquei alojado na sala dos professores da mesma escola. Nem sequer há um serviço de restauração, que não seja um improviso em casa de alguém. Para a higienização pessoal, até os funcionários da administração municipal acorrem diariamente, às primeiras horas da manhã, ao imponente Rio Zambeze, à entrada da vila, que não tem água canalizada. O rio é a grande casa de banho pública.

Um dos argumentos principais que foram invocados aquando da instauração da nova divisão política administrativa, que expandiu o número de províncias para 21, foi o da aproximação dos serviços públicos ao cidadão. Em Cazombo, a administração do Estado nem sequer consegue aproveitar o rio, que sempre ali esteve, para levar, ao menos, água canalizada às instituições do poder local. Não havendo tais serviços, é evidente que não há nenhuma aproximação dos serviços públicos ao cidadão, mas sim a criação de mais burocracia. E a burocracia não simplifica, antes complica ainda mais a disfunção da relação entre o poder político e o cidadão.

Na passada quinta-feira, visitei o Centro de Apoio de Pesca Artesanal do Nzeto (ver as imagens abaixo), na província do Zaire. O Centro foi inaugurado em 2021 pela actual vice-presidente da República, Esperança Costa, com um financiamento de perto de três milhões de dólares do Banco Africano de Desenvolvimento. Meros três anos volvidos, a estrutura gerida pelo Estado está praticamente abandonada e com os equipamentos danificados, incluindo a fábrica de gelo. Os quatro seguranças que permanecem ao serviço da instituição estão há nove meses sem salários. São três milhões de dólares atirados ao mar, na sede municipal do Nzeto, onde abunda a pesca artesanal.

Curiosamente, a uns poucos metros, um cidadão chinês montou um negócio próspero de venda de gelo aos pescadores, substituindo-se, com sucesso, à prática de abandono do Estado.

A ruína do Centro, por má gestão pública, gerou uma oportunidade para o sector privado, que alguém aproveitou com uma solução simples e prática, de produção e venda de gelo.

O que terá impedido que um cidadão privado angolano tivesse tomado a iniciativa de fazer o mesmo que o cidadão chinês? Esta é a grande questão sobre a acção ou inacção da cidadania angolana.

O maior estrago que a sociedade angolana enfrenta não é o da corrupção material, mas o vácuo da consciência e da responsabilidade política e socioeconómica na realização do bem comum.

Com tantos recursos do Estado, o governo deita a perder extraordinárias oportunidades de gerir melhor o que é de todos e para todos, de modo a promover a melhoria das condições de vida dos cidadãos e fazer a avançar o país. Por sua vez, o cidadão não ocupa o espaço, porque não se identifica com o bem comum.

Falhamos na construção de um Estado em que o cidadão participa activamente na sua operacionalidade e no desenvolvimento humano e não apenas nas eleições e na maledicência.

Resumidamente, o Centro de Pesca Artesanal do Nzeto é um exemplo de como funciona a economia política de Angola. O Estado centraliza, controla e abandona, mas o cidadão privado, em geral, não se organiza em grupos de pressão para libertar a economia e para que eles próprios se desenvolvam. Cada um procura uma oportunidade individual, aplicando a lei do esquema, do compadrio e do menor esforço.

Sem decisões políticas que promovam a funcionalidade do Estado e sem liberdade económica, o país não avança.

O país está parado.

A mente de muitos cidadãos está focada em 2027, esperando que um novo líder traga uma nova realidade, repetindo-se a grande expectativa de 2017. Mas a esperança não deve ser essa.

É o povo, o cidadão, o eleitor, a sociedade que deve agir por si próprio para se libertar das amarras do poder, qualquer poder, e perseguir os seus sonhos, os seus objectivos e as suas vontades. A dependência do poder político deve ser invertida. Não é o que o poder pode fazer por nós, mas o que nós podemos fazer por nós.

No formalismo a que alguns juristas angolanos nos habituaram, parece haver sempre uma simplicidade constitucional na relação entre o poder e o povo. Citam-nos o artigo 3.º da Constituição, que determina que a soberania pertence ao «povo que a exerce através do sufrágio universal, livre, igual, directo, secreto e periódico, do referendo e das demais formas estabelecidas pela Constituição, nomeadamente para a escolha dos seus representantes»,e dá-se o tema por resolvido. Desde que o povo vote, tudo fica legitimado e resolvido, e o poder político é exercido como se quer.

Esta é uma ilusão normativa. O poder é uma questão da esfera do real e não da norma.

Relativamente ao poder político interno, não é muito diferente. Há factores infra-estruturais que determinam a vida do cidadão e que este não controla através das eleições ou dos referendos. É por isso que o poder tem de estar sempre limitado, e não apenas por eleições.

O poder político é essencialmente a capacidade de influenciar ou controlar o comportamento de pessoas e instituições. Portanto, o poder influencia todos os dias os cidadãos. As decisões e os actos dos servidores públicos no Palácio da Cidade Alta e nas administrações do Estado e da justiça interferem todos os dias com o povo. Por isso, todos os dias essas actuações deviam ser escrutinadas pelo povo.

Assim, o povo deve agir e participar democraticamente. Não pode ficar à espera.

Este é o ponto essencial da minha comunicação. A Constituição deve conter modelos de participação activa dos cidadãos nos processos deliberativos.

Assim, para além da participação em eleições, o povo deve participar no exercício do poder político sob formas mais alargadas e profundas.

Desde logo, deve participar em várias formas de intervenção pública, como os protestos, petições e lobbying, de forma a pressionar o governo e a fazer a mudança.

Também deve pressionar no sentido de reforçar a independência do poder judicial, da comunicação social e de uma actividade fiscalizadora efectiva por parte da oposição.

O envolvimento comunitário é outra forma de participação. Os cidadãos podem contribuir para as suas comunidades através do voluntariado e de outras formas de envolvimento cívico. Isto ajuda a melhorar as condições locais e promove um sentido de responsabilidade partilhada.

Finalmente, saliento o papel da educação. A atitude da sociedade civil na abordagem pública sobre o sistema de educação em Angola tem sido praticamente de indiferença. O país precisa de uma reforma educativa urgente, que inclua uma nova revisão curricular, pois os actuais currículos, segundo o Ministério da Educação, têm um desfasamento de 20 anos. A educação é a principal chave para as mudanças por que tanto ansiamos e passam, de forma incontornável, pela mudança de mentalidade, pela formação adequada das nossas filhas e filhos e descendentes, para que exerçam a sua soberania e decidam sobre o seu futuro, com os valores e qualificações que só um sistema de educação exigente e eficaz pode proporcionar.

Estar informado sobre os processos e questões políticas é crucial. Os cidadãos instruídos estão mais bem equipados para tomar decisões que reflictam os seus interesses e valores.

Por ora, temos de relembrar a velha questão de Lenine: O que fazer? Obrigado.

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