Seca no Cunene: o Maior Pesadelo das Crianças
Três meses depois de ter pisado pela última vez o solo pátrio, Mumbanda Wakapupa está de regresso ao Cunene. Da vizinha República da Namíbia traz memórias agridoces e alguns recursos que irão ajudá-la a sustentar os cinco filhos nos próximos meses.
“Costumo ficar lá no tempo seco e tento regressar aqui no tempo de cultivo, quando chove um bocado, a ver se conseguimos alguma coisa para comer”, explica a camponesa de 38 anos.
Como muitos aqui, Mumbanda e o seu esposo viram-se entre a vida e a morte, transformados em migrantes do clima – aqueles que são obrigados a abandonar as suas terras por causa das crises climáticas. Quando se vão, deixam os filhos menores de idade para trás, ao cuidado dos vizinhos na aldeia de Mphokolo, na comuna do Mucope.
“Lá [na Namíbia] a vida também não é fácil. Nem todos nos tratam bem, vamos mesmo lá só pela fome”, descreve Mumbanda, que na Namíbia costuma trabalhar como empregada doméstica e recebe um salário que considera “muito, muito pouco”.
A seca cíclica que afecta o sul de Angola, considerada por organismos internacionais como uma das piores dos últimos 40 anos, tem efeitos nefastos sobre a vida de milhares de angolanos nas zonas mais afectadas, como é o caso do Cunene.
Um relatório de 2021 da organização de direitos humanos Amnistia Internacional estima que, até àquele ano, mais de sete mil angolanos terão sido obrigados a abandonar as províncias da Huíla e do Cunene para se refugiarem na Namíbia por causa da seca.
A evidência deste número, que muito provavelmente terá triplicado até aos dias de hoje, encontramo-la nos kimbos recônditos que visitamos na Huíla e no Cunene, completamente abandonados, sob controlo de mulheres e idosos.
“Eles [os homens] aqui abandonam tudo, os filhos e as mulheres, por causa da fome. Uns já nunca voltam. Depois são as mulheres que também estão a ir à procura de comida e deixam os filhos com as avós ou as vizinhas”, conta Wilca Ndapandula, responsável da Casa de Espera, um centro de acolhimento de mulheres grávidas no município do Chiulo.
Foi na Casa de Espera que conhecemos Mumbanda. O seu regresso da Namíbia tem um propósito diferente desta vez: o nascimento do sexto filho. Quando lhe perguntamos porque preferiu não ter o filho num hospital da Namíbia, ela responde: “Sou angolana, apesar de tudo aqui é mesmo a minha casa.”
É uma pena que este seu sentido patriótico não lhe valha de nada quando, desesperada, vê os seus filhos adoecerem, por não terem o que comer. “Às vezes não sei o que dizer. Há dias em que eles não têm mesmo nem o que comer, nem o que beber”, diz-nos Mumbanda, com voz trémula.
Mas a sua história não é isolada. Na Unidade Especial de Nutrição (UEN) do Hospital da Missão Católica do Chiulo, vimos algumas mães acompanhadas de crianças diagnosticadas com desnutrição aguda moderada e severa.
“Estes dois bebés aí sentados nem conseguiam mexer-se quando chegaram aqui”, explica-nos o médico pediatra Filippo Pistolesi, apontando para dois pacientes na unidade, enquanto nos faz uma visita guiada.
Pistolesi é italiano e está no Cunenehá três meses, numa missão humanitária com a organização italiana Médicos Com África CUAMM, que opera em Angola desde 1997.
“As mães, quando chegam a nós com as crianças doentes, dizem que têm sobretudo falta de comida e, depois, em situação de doença, não têm condições de vir ao hospital. O acesso aos serviços sanitários não é fácil aqui por causa das distâncias”, explica o médico.
“Magras que nem sei lá o quê”
Apesar da constante negação desta realidade por parte do poder político angolano, a fome é a principal preocupação de muitas pessoas no sul do país. “Nós dormimos e acordamos a pensar no que vamos comer amanhã. Se vamos mesmo comer”, resume Mumbanda. “Nem estamos já a falar de nós, é mesmo só já as crianças”, complementa.
No Cunene, tivemos acesso ao interior do Centro de Saúde do Mucope, município de Ombadja, localizado na comuna tida como uma das zonas “mais críticas” quanto aos números de desnutrição infantil a nível da província, de acordo aos dados partilhados connosco pela organização não governamental Médicos Com África CUAMM.
Apesar de ter uma estrutura de atendimento limitada, este centro recebe muitos dos quase 62 mil angolanos que moram nesta região.
“Esta é uma comuna especial. Tem muita população e o nível de desnutrição aqui é muito alto, porque é uma comuna que sofre de seca constante”, explica Indira Tchicote Kativa, supervisora municipal de saúde,enquanto nos apresenta o programa terapêutico para pacientes em ambulatório do centro, o chamado PTPA.
Os dados dos Médicos Com África CUAMM mostram que no ano passado, num universo de 13 594 pessoas rastreadas, 1264 crianças foram diagnosticadas com desnutrição aguda moderada e 815 com desnutrição aguda severa, só no município de Ombadja.
“Temos recebido muitos casos de desnutrição aqui neste centro. Às vezes, numa semana podemos receber 10 a 15 casos de desnutrição aguda severa só aqui mesmo”, informa-nos Vivaldo de Oliveira, enfermeiro do Centro de Saúde do Mucope.
A simpatia da equipa médica jovem que nos recebeu contrasta com a falta de recursos técnicos e logísticos para que mais crianças possam ser acudidas. Neste centro, por exemplo, há uma ruptura no stock dePlumpy’Sup, um suplemento destinado a crianças com desnutrição aguda moderada, há mais de três meses.
“A ruptura do suplemento que é geralmente distribuído pelo PAM (Programa Alimentar Mundial) é a nível de toda a província”, esclarece asupervisora Indira Tchicote Kativa.
Em resposta ao Maka Angola, o PAM em Angola esclareceu que a “distribuição do suplemento Plumpy’Sup é da responsabilidade do Governo de Angola”.
“O Programa Alimentar Mundial continua a trabalhar de forma colaborativa com as autoridades tanto ao nível local como nacional para apoiar a distribuição do Plumpy’Sup na província do Cunene”, esclarece o organismo internacional.
Outra dificuldade que identificamos é que este centro médico não tem, desde há cinco anos, uma única ambulância. O que significa que, para receberem tratamento, as crianças com desnutrição em situação mais grave têm de se deslocar à Unidade Especial de Nutrição (UEN) do Hospital da Missão Católica do Chiulo, a 35quilómetros de distância, por meios próprios dos pais. “Os meios próprios” aqui querem dizer pedir uma boleia de motorizada ou caminhar a pé mesmo.
No seu relatório de 2023 sobre a situação humanitária em Angola, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) diz que no país “a situação da segurança alimentar continua a ser uma grande preocupação entre as famílias vulneráveis”.
“Foi registada uma elevada taxa de desnutrição aguda severa (DAS), especialmente entre crianças menores de 5 anos”, acrescenta a agência.
“Há ocasiões em que a situação de fome é tanta que as mães querem partilhar os suplementos que damos para as crianças com desnutrição aguda severa com os outros filhos que não têm desnutrição. Às vezes elas próprias também comem, apesar de não ser adequado”, explicou o médico Filippo Pistolesi.
Segundo constatámos, muitas pessoas em zonas recônditas no Cunene estão dependentes de cozinhas comunitárias ou de doações de organizações não governamentais nacionais ou internacionais, como a World Vision.
“É triste que tenham de ser os estrangeiros a vir aqui alimentar o nosso povo. As pessoas vêem mesmo essa situação, mas não querem fazer nada”, disse-nos um funcionário público local, que prefere não ser identificado por temer represálias. “Há zonas aqui em que você até chora. Consegues mesmo ver os ossos das crianças, magras que nem sei lá o quê”, lamenta.
No decorrer desta reportagem, em muitos locais nos disseram que a fome deixou de ser um “choque no seio destas famílias no sul de Angola”, tal é a frequência com que ocorre.
A esperança na linha da frente
No meio desta “situação emergencial” que se vive no sul de Angola, tal como a caracteriza o padre e activista angolano Pio Wacussanga, há gente que arregaça as mangas e faz o possível para cuidar de quem mais precisa.
Clara Panboambangui tem 22 anos. A quarta de seis irmãos, nasceu no Cunene e encontrou na enfermagem uma forma de contribuir, usando o seu saber ao serviço das mulheres e crianças afectadas pela seca.
“Há dias em que atendemos mais de 200 crianças ou mais de cento e tal mulheres grávidas. Mas sabemos que não podemos parar”, diz a técnica média de enfermagem que colabora com a organização Médicos Com África CUAMM.
Cada dia tem os seus desafios. A jornada humanitária pelas distintas regiões da província leva Clara a testemunhar a desgraça de milhares de famílias que ali habitam.
“Aqui o problema de fome é enorme. As mães não sabem o que fazer para alimentar as crianças. Encontramos muitos casos de crianças sem comer [há vários dias]”, conta.
Clara também descreve casos constantes onde as mães querem comer os suplementos médicos atribuídos às crianças com desnutrição. “O nosso trabalho também tem sido de sensibilização. Visitamos as aldeias não só para rastrear ou vacinar mas também para sensibilizar, mas nem sempre é fácil”, acrescenta.
Como Clara, Madalena Luzia, também de 22 anos, é igualmente técnica média em saúde pública. O seu enfoque é a saúde materno-infantil.
“O nosso trabalho é o de rastrear a saúde das mulheres grávidas daqui. Apesar das dificuldades, temos conseguido chegar a distintos lugares distantes”, diz Madalena.
Madalena descreve as dificuldades de muitas mulheres grávidas que encontra durante o trajecto. Preocupada com o futuro das crianças por nascer, diz que, além da fome, o acesso à água é também muito difícil.
“Temos encontrado muitas mulheres grávidas que têm que percorrer quilómetros e quilómetros para poderem encontrar água para beber. E elas queixam-se de dor de baixo-ventre por causa das longas distâncias”, diz Madalena.
De acordo com o The Borgen Project, mais de 1,2 milhões de angolanos têm dificuldades no acesso à água por causa da seca no sul do país.
No Cunene e na Huíla, vimos pessoas beberem água no mesmo local onde bebe o gado, em chimpacas, poços de água a céu aberto.
As coisas podem piorar
A maior parte dos nossos entrevistados prevê que o quadro de desnutrição infantil, resultante da fome, venha a piorar nos próximos meses.
“De 2021 para cá, a situação piorou bastante. De Janeiro a Junho normalmente chove um bocado e há massango, que é o principal cereal aqui. Mas a tendência de Setembro a Dezembro é os casos aumentarem, porque há mesmo fome e seca”, alerta a supervisora de saúde do município de Ombadja.
Médicos e enfermeiros partilham da mesma visão, clamando por cada vez mais apoio logístico do “poder central”, para que não morram tantos como já viram acontecer “nos anos passados”.
Apesar de este ser um assunto que limitadamente integra o debate público frequente em Angola, activistas na região sul alertam para o facto de a situação da seca no sul ainda ser de emergência, carecendo de muito mais atenção.
Pio Wacussanga, vencedor do prémio “Defensor de Direitos Humanos 2018” da Rede de Defensores de Direitos Humanos da África Austral, lamenta a falta de “compaixão” dos dirigentes de Angola face à crise que se vive no sul do país. “É necessário o nosso Estado ter ouvidos de ouvir e olhos de ver”, recomenda o activista, que continua a defender que o governo declare um “estado de emergência”, de modo que se possa dar uma resposta mais “adequada” ao que se passa no sul do país.