A Estranha Austeridade de Joel Leonardo

Existem contradições inexplicáveis no exercício dos poderes do Estado em Angola. Há pouco mais de um mês, o Fundo Monetário Internacional (FMI), por ocasião da sexta avaliação da implementação do acordo com Angola, desdobrou-se em elogios à política de contenção orçamental do governo, vulgo austeridade.

E de facto, quer ao nível do equilíbrio orçamental, quer da dívida pública, o executivo alcançou resultados apreciáveis, que agora têm de se reflectir na vida dos cidadãos.

É também nesta linhagem que a ministra das Finanças, qual Dama de Ferro, repete o discurso da prudência e restrição orçamental.

No entanto, há também quem faça ouvidos moucos a esta política esforçada.

A abertura do ano judicial ocorre no dia 22, no Huambo. Para esta ocasião, será disponibilizada e mobilizada uma profusão de meios – desde voos especiais a hotéis e alojamentos, comes e bebes, transportes e demais artifícios para festas com grande pompa.

Os juízes dos tribunais superiores, suas comitivas e seus amigos vão viajar para o Planalto Central e gastar dinheiro público.

Tudo estaria bem, se a situação financeira do Estado fosse de desafogo. Mas não é. Tem sido percorrido um caminho duro, sobretudo para o povo, um caminho de grande austeridade.

É por tudo isto que não se compreende a razão para organizar a abertura do ano judicial no Huambo, contabilizados todos os custos inerentes.

Pode dizer-se que não é a primeira vez que tal acontece e que se trata de um passo necessário para a descentralização do poder. De facto, não é a primeira vez. Rui Ferreira, quando assumiu a presidência do Tribunal Supremo, organizou uma abertura do ano judicial em Benguela. Mas basta pensar nas recentes declarações de Rui Ferreira a propósito da Constituição para que não o tomemos como exemplo a seguir.

Mais peso tem o argumento político da descentralização. Num país que herdou e não reformou as estruturas extremamente centralizadas do colonialismo do Estado Novo, são de aplaudir as movimentações para descentralizar e aproximar o poder das populações. Contudo, se há poder que é descentralizado é o poder judicial. Cada comarca, por todo o país, dispõe de um tribunal. O poder judicial é por natureza descentralizado e difuso; nessa medida, tem menos necessidade de descentralização.

Os esforços de descentralização deveriam assumir uma perspectiva mais abrangente: por exemplo, não em viagens de quase turismo, mas antes na transferência geográfica da sede de tribunais superiores. Por exemplo, tal como a Alemanha, que sediou o seu Tribunal Constitucional na pequena cidade de Karlsruhe, em Angola poder-se-ia mudar a sede do Tribunal Constitucional para Benguela ou para uma cidade do interior, em Malanje, Bié ou mesmo Moxico. Isto, sim, seria uma verdadeira descentralização e revelaria uma política de território muito diferente, equilibrando o país e simultaneamente relançando-o em termos económicos. O passo mais significativo é a deslocação das actividades públicas e a sua distribuição por todo o país, impulsionando a que as actividades privadas seguirão o mesmo caminho.

A verdade é que andar a passear o ano judicial por cidades diferentes, numa época de austeridade, não passa de um exemplo de insensibilidade e despesismo face às dificuldades concretas do país.

Ademais, é evidente que a despesa no âmbito do poder judicial devia ser orientada para operações específicas, de cuja falta todos os operadores judiciais se queixam: computadores, tinteiros, fotocopiadoras, casas de banho e demais instrumentos e infra-estruturas básicas para o regular funcionamento dos tribunais.

Há que recomeçar a reconstruir a casa da justiça pela base, e a base são os meios indispensáveis para que os tribunais funcionem com eficácia e dignidade. Não interessam as festas de aparato, as frotas automóveis de luxo ou os grandes gestos ocos. O importante são os meios fundamentais de trabalho.

Em Agosto do ano passado, os magistrados saíram à rua para reivindicar condições de trabalho adequadas. Na altura, disseram que “a maior parte dos tribunais e das procuradorias” de Angola funcionam com dinheiro dos próprios magistrados, que “tiram do seu bolso para comprar papel e tinteiro”. Um magistrado explicou que o “dia em que deixar de fazer isso e ficar à espera de que uma resma de papel para o mês todo chegue para imprimir todos os documentos, os constituintes, os advogados e a população vão ficar à espera, com todas as consequências que disso podem advir”.

Importa averiguar quais os passos que já foram dados para resolver esta situação e a falta de condições de trabalho generalizadas nos tribunais. Este é o ponto essencial. Festas e aberturas de ano judicial deslocalizadas são folclores que não abonam em nada a justiça, e só criam mal-estar.

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