A Brutalidade do Decreto

O Decreto Presidencial n.º 11/22 – que actualiza as Medidas de Prevenção e Controlo da Propagação do Coronavírus, feito ao abrigo da alínea m) do artigo 120 e do n.º 4 do artigo 125 da Constituição da República de Angola (CRA) – determina a obrigatoriedade de os estudantes com idade igual ou superior a 12 anos exibirem certificado de vacinação ou equiparado, sob pena de não poderem acederem ao seu estabelecimento de ensino, de acordo com a alínea h) do artigo 8.º de referido Decreto.

O advogado e professor universitário José Luís Domingos já escreveu sobre a inconstitucionalidade desta determinação (https://www.facebook.com/zeluis.domingos.35/posts/10159013417500283), pelo que não abordaremos as questões jurídicas que a norma levanta. Apenas salientamos que já era tempo de que uma janela de bom senso se abrisse nos gabinetes dos assessores legais da Presidência da República. Têm chegado demasiado confusões jurídicas oriundas dessas paragens.

A questão que pretendemos colocar acerca desta disposição proibitiva é a sua falta de realismo e a necessidade de se perceber que não é possível governar um país por decreto.

A realidade é que o Decreto é impraticável. Não existe, em toda a Angola, uma máquina administrativo-sanitária que garanta que todos aqueles jovens que se querem vacinar o possam fazer.

Nem o Ministério da Saúde nem o Ministério da Educação podem garantir que estão imediatamente em condições de cumprir o plano de vacinação. Nessa medida, não têm legitimidade para impedir que nenhuma criança vá à escola. São necessárias equipas móveis para se deslocarem aos estabelecimentos de ensino, as quais, com o apoio dos professores, devem proceder à vacinação das crianças na própria escola. A isto acresce que, por vezes, os encarregados de educação, sobretudo nos quimbos, não têm possibilidade de acompanhar os seus filhos, devendo ser o Estado a protegê-los. Se isto não acontecer, assistiremos a um intenso e muito preocupante abandono escolar.

Obviamente, as dificuldades administrativo-sanitárias acima referidas são ainda mais acentuadas se se considerar, como tem de ser, a disparidade entre as zonas urbanas: designadamente, entre Luanda e sua periferia urbana e as zonas mais rurais ou interiores.

À medida que se afastam da capital, a tipologia das escolas, a sua implantação e diversidade diferem enormemente. Logo, existe o perigo inequívoco de que a aplicação integral do referido Decreto torne impossível a qualquer aluno das zonas rurais frequentar a escola, devido a falta de acesso à vacinação ou à informação parental. Ora, isto é absurdo.

Estamos assim perante uma norma para a qual não existem condições técnicas de aplicação e que encerra um conteúdo discriminatório entre cidade e mato. Na prática, é uma norma para não ser aplicada, ou para ser aplicada de forma arbitrária e discricionária, gerando vários tipos de abusos.

Consequentemente, tem de se colocar a pergunta: por que razão se fazem e aprovam normas que não podem ser aplicadas, que não têm qualquer correspondência com a realidade angolana?

A resposta tem duas vertentes.

A primeira é aquela que designaremos como a mundividência dos juristas. A legislação angolana está refém da visão do mundo que os juristas têm, e essa visão do mundo não resulta da experiência da vida concreta em Angola, mas sim da importação acrítica de modelos estrangeiros, designadamente portugueses.

Muitos dos juristas que determinam a lei em Angola adoptam modelos positivos portugueses, oriundos da velha tradição legalista do país, assente na convicção de que tudo se resolve por decretos da coroa.

Na verdade, não é assim e, se a lei não incorporar a filosofia e visão do povo a que se refere, não terá qualquer viabilidade. Transforma-se rapidamente em letra morta. Como temos referido várias vezes, as leis ajudam, mas não resolvem.

A segunda parte da resposta diz respeito à ausência de processos deliberativos. A tomada de decisões políticas muitas vezes tem de ser rápida e unívoca. Contudo, sempre que possível, deve seguir um caminho abrangente: aquele a que Amy Gutmann e outros chamaram “democracia deliberativa”.

A democracia deliberativa implica que exista um processo de tomada de decisão participado pelos interessados e por aqueles que vão ser afectados, justificando-se as decisões pelo facto de os diferentes intervenientes darem uns aos outros razões mutuamente aceitáveis e geralmente acessíveis, com o objectivo de chegar a decisões obrigatórias para todos.

Isto quer dizer que a decisão deve ser precedida de argumentação e consulta. Sem retirar poder ao decisor supremo, neste caso, o presidente da República, este deve contudo tomar as suas decisões não porque quer, mas após um procedimento de auscultação e diálogo em que vários pontos de vistas sejam tidos em conta e as decisões encontrem uma fundamentação racional.

O debate racional, e não odioso, das questões e o abandono da mundividência imperialista por parte dos juristas são passos determinantes para melhorar a governação de Angola.

Voltando ao Decreto sobre a proibição de acesso à escola dos não-vacinados: a única solução é considerá-lo uma norma programática e não de aplicação imediata. Isto quer dizer que não deverá haver qualquer proibição de frequência escolar, até que estejam reunidas condições técnicas em todo o país para que a totalidade dos estudantes sejam vacinados.

Nesse sentido, depois de todos terem acesso a vacinação, poderá haver uma obrigatoriedade de se vacinarem para que continuem a frequência escolar. Neste momento, trata-se apenas de um objectivo, não de uma realidade. E a política tem de fazer-se a partir da vida concreta das pessoas, não a partir de construtivismos ultrapassados.

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