Jacarés do Cuangar – Parte 2
M. D. Manuel – sementes e máquinas de costura
Amélia Marta Kakuhu pagou, a 26 de Março, à empresa M. D. Manuel – Comércio e Serviços, um total de cinco milhões de kwanzas (ordem de saque n.º 63) para a aquisição de sementes e fertilizantes destinados à agricultura familiar.
“Confirmámos a entrega de 60 sacos de adubo, que não custam cinco milhões de kwanzas”, denuncia a Fonte 1.
Passados três dias, a 29 de Março, a mesma empresa recebeu um pagamento de dois milhões e 400 mil kwanzas (ordem de saque n.º 73) para a “aquisição de 20 máquinas de corte e costura para as mulheres rurais capacitadas na sede municipal e comunais”. Não houve entrega de nenhuma máquina de costura, assevera a Fonte 1: “As 20 máquinas que chegaram ao município foram adquiridas pela Adecofil. Não vimos aqui nenhuma máquina entregue pela M. D. Manuel.”
Li Amões – vacinação e motobombas
No dia de 26 de Março, por via da ordem de saque n.º 65, a Organizações Li Amões e Filhos, de Piedoso Tapalo Luísa Salomão, recebeu um pagamento no valor de quatro milhões de kwanzas para “apoio aos serviços de campanha de vacinação na sede municipal e comunais, tendo em conta o calendário estabelecido”. As Fontes 1 e 2 corroboram não ter havido registo da prestação de qualquer serviço à campanha de vacinação que, por sua vez, não foi realizada.
Rafael Chinoia desmente. Afirma ter havido campanhas de vacinação de crianças, durante o Estado de Emergência, nas zonas longínquas de Lubale e Cafuma, enquanto a campanha dirigida pelo governo provincial se cingiu às zonas de fácil acesso. “Apoiámos com transporte e alimentação dos vacinadores”, explica.
“Isso é uma estratégia de justificação. Não houve essa campanha de vacinação. Nem conseguem dizer se foi de sarampo ou de quê”, contrapõe a Fonte 2.
Passados dois dias, a 28 de Março, as Organizações Li Amões beneficiaram de mais uma ordem de saque (n.º 71), no valor de quatro milhões de kwanzas, para “aquisição de motobombas e respectivas mangueiras (entradas e saídas) para agricultura familiar”. “Eu confirmei a entrega de dez motobombas à administração, que custaram 75 mil kwanzas cada. No total, as motobombas estão orçamentadas em 750 mil kwanzas. O resto é lucro da empresa”, contabiliza a Fonte 1.
O consultor económico da administração municipal confirma a entrega de apenas dez motobombas e justifica-se com o aumento de preços no mercado. “É uma questão de ver o preço pago pelo fornecedor, e vamos adaptar-nos e negociar”, afirma.
Dobema
No âmbito do PIDLC, a Dobema recebeu, a 30 de Março, dois milhões e 700 mil kwanzas por via da ordem de saque n.º 75, para “aquisição de instrumentos e equipamentos completos para apoio às equipas de futebol da sede municipal e comunais (bolas, redes de baliza, bandeirinhas, apitos, chuteiras) e outros meios necessários”. Laurindo Hossi Sapalo e Dorcas Baita Esperança Manjinela são os proprietários da Dobema, constituída a 13 de Outubro de 2016.
Os funcionários da administração local contactados pelo Maka Angola referem não terem visto a ser entregue sequer uma bandeirinha, daquelas que ficam nos quatro cantos do campo de futebol e na mão do fiscal de linha.
“Desde 2017, o futebol organizado cessou no Cuangar. Só os miúdos brincam nos campos de futebol. Não houve distribuição de nenhum equipamento de futebol. Talvez amanhã? Aqui, nem campeonato de gira-bairro temos”, ironiza a Fonte 2.
“A área social da administração não recebeu sequer uma bola. Se calhar um dia destes levam uma”, lamenta a Fonte 1.
Contrariando os denunciantes, Rafael Chinoia afirma ter feito pessoalmente a entrega de 30 conjuntos de uniformes ao chefe de secção da Juventude e Desportos, assinando o termo de entrega. Não especifica a entrega de mais material. “É possível falar de uma acção e escapar outra”, diz o consultor. Este reconhece que, em tempo de pandemia, “não se pratica desporto” na localidade.
No dia 8 de Abril, a Dobema recebeu, pela ordem de saque n.º 80, o valor de três milhões e 500 mil kwanzas para “apoio às actividades da celebração das datas comemorativas (alimentação, t-shirts, bonés)”. Em pleno Estado de Emergência, questionamos nós, que data importante havia no calendário para tão dispendiosa celebração?
“Não houve nada, nem a distribuição de uma camisola ou um boné. Não houve qualquer actividade política ou social com comes e bebes. Ninguém sabe o destino dado a esse dinheiro”, lamenta a Fonte 1.
“Ninguém saía de casa até finais de Maio, quando acabou o Estado de Emergência. Comemoraram quando? Qual data? Não sabemos”, assevera a Fonte 1.
O consultor da administração municipal tem a resposta oficial. “Estamos a falar do dia 4 de Abril. Essa actividade foi realizada de forma restrita para cumprir com as medidas de calamidade pública”. Segundo o interlocutor, “pagámos também antecipadamente para a celebração do 17 de Setembro [Dia do Herói Nacional]”.
Segundo o jurista Cremildo Paca, “as despesas com festividades atentam ao quadro legal sobre o Estado de Calamidade Pública”, em vigor desde 25 de Maio. Esta circunstância não permite, segundo o jurista, “ajuntamentos de carácter festivo em local não domiciliário”.
“A situação é ainda mais crítica pelo facto de a maior parte das despesas com festividades terem sido realizadas no período em que vigorou o Estado de Emergência, cujas restrições eram ainda muito mais severas”, acrescenta.
As bandeiras da Albertina
No dia 18 de Junho, a Albertina e Irmãos Lda. vendeu 70 bandeiras da República, pelo valor exacto de dois milhões e 397,038 kwanzas, conforme a ordem de saque n.º 123. Cada bandeira tem um custo de 34,243 kwanzas. Será que uma bandeira tão cara pode ajudar a animar o patriotismo dos cidadãos?
Rafael Chinoia tem, claro, justificação pronta: “As bandeiras foram adquiridas no âmbito do apoio à cidadania. A bandeira faz parte do símbolo da nacionalidade. Não as tínhamos. Já distribuímos pelas escolas, esquadras policiais, etc.”
Acrescenta ainda: “Discutimos bastante o preço, porque foram feitas em Luanda. Não tínhamos outro fornecedor e aderimos. Ficámos sem alternativa.”
Pecuf
No dia 26 de Março, a ordem de saque n.º 26, da Direcção Municipal de Saúde do Cuangar, processou o pagamento de quatro milhões de kwanzas à empresa Pecuf, para aquisição de materiais de biossegurança. No mesmo dia, a ordem de saque seguinte transferiu mais quatro milhões e 800 mil kwanzas para a Pecuf, destinados à “promoção de campanha de vacinação na sede municipal e comunais”.
No dia seguinte, entrou em vigor o Estado de Emergência, que se prolongou até ao dia 25 de Maio, e consequentemente não houve campanha de vacinação.
Passados três dias, a Direcção Municipal de Saúde pagou mais de dois milhões de kwanzas à mesma Pecuf, para a “recolha e queimada de lixo hospitalar”. “Não aconteceu. Nunca vimos os meios de recolha do lixo hospitalar”, garante a Fonte 2.
A 7 de Abril, a empresa Pecuf – Prestação de Serviços Lda. ganhou sete milhões de kwanzas (ordem de saque n.º 79) pela venda de material de biossegurança, incluindo lixívia, sabão azul, álcool-gel, luvas e máscaras para prevenção da pandemia Covid-19. Ora, a Pecuf é propriedade do actual director do Gabinete de Estudos, Planeamento e Estatística (GEPE) da administração municipal do Cuangar, Pedro Kawengo Chioca Cufo. Segundo dados recolhidos pelo Maka Angola, o desembolso de tal verba foi feito sem contrato, como exige a regra de execução do Orçamento Geral do Estado (OGE) de 2020.
“Só vimos a distribuição de uma barra de sabão, um frasco de lixívia e outro de álcool-gel por cada escola”, afirma a Fonte 2. Há cerca de dez escolas no Cuangar. Rafael Chinoia explica: “Na altura, as escolas estavam encerradas e essa distribuição era apenas para os funcionários. Cabimentámos e realizámos a distribuição nas comunidades.”
Sobre o conflito de interesses do fornecedor, Chinoia fala em mais uma mera coincidência: “O Pedro Cufo estava no Cuíto Cuanavale como assessor jurídico da administração municipal e solicitámos [a administração do Cuangar] a sua presença aqui como director do GEPE.”
No dia 18 de Junho, a Pecuf embolsou mais três milhões e 500 mil kwanzas, através da ordem de saque n.º 122, pela prestação de serviços de formação de empreendedorismo, designada “Como criar e gerir o seu próprio negócio”.
“Nunca houve essa formação. Estava todo o mundo em casa, com o Estado de Emergência. E depois também não houve. Quem é formado, tem de receber um certificado a atestar essa formação”, refere a Fonte 1.
Mais uma vez, Rafael Chinoia justifica, com toda a calma: “A formação será feita. Estamos na fase de restrições por causa do Covid-19 e não estamos focados nesse trabalho. Começámos pela prática, com os cursos de corte e costura, e agora avançaremos para o processo de incutir na mente a realização do negócio.”
Sobre o pagamento antecipado, o consultor diz apenas que “era para ser feito na hora. Tudo de uma vez, a formação e o pagamento, mas é um trabalho juntar tanta gente. Levou tempo mas conseguimos”.
Adecofil
No dia 29 de Junho de 2020, de acordo com a ordem de saque n.º 146, a administração municipal pagou um milhão de kwanzas à empresa Adecofil Lda. para a “aquisição de tendas para apoio à campanha de vacinação do gado”.
“Eu forneci seis tendas grandes sul-africanas, onde cabem mais de cinco pessoas cada. Comprei-as no Lobito, para a Polícia de Guarda Fronteiras. Ninguém me disse que era para apoiar a campanha de vacinação. Entreguei aos homens da administração que fizeram a requisição. Tem termo de entrega”, refere Adérito Kambamba, o dono da empresa.
“O vendedor entregou as tendas à administração, mas não sabemos se esta as entregou à polícia. Isso é desvio de recursos. Não se enquadra na estratégia de combate à pobreza, porque a polícia tem o seu próprio orçamento”, explica a Fonte 2.
Rafael Chinoia faz notar que a administradora Marta Kakuhu ficou bastante sensibilizada ao perceber que, nos postos fronteiriços, os efectivos da Polícia de Guarda Fronteiras estão desprovidos de acomodação. “Solicitámos tendas para o efeito e surgiu a campanha de vacinação do gado. Priorizámos a campanha, porque as tendas não eram adequadas para a acomodação da polícia”, conta Chinoia.
“Demos as tendas ao director da agricultura e pescas, que já as distribuiu, salvo uma que ficou com a administradora para as suas actividades de campo”, acrescenta.
Melvy – Comércio Geral
A Melvy – Comércio Geral prestou um serviço inusitado que lhe valeu um pagamento de três milhões e 500 mil kwanzas, conforme a ordem de saque n.º 99, de 11 de Maio. Alegadamente, vendeu “material gastável de escritório para apoiar os serviços no âmbito do Programa de Combate à Pobreza”.
“Estamos a falar de resmas de papel, agrafadores, etc. É dentro da administração que usamos esse material para registar as pessoas vulneráveis, com necessidades”, justifica Rafael Chinoia. O consultor revela que o “excedente” é usado para o trabalho corrente da administração, que tem o seu próprio orçamento para o efeito.
“Temos o princípio da transparência. Sabemos quais são as doenças que atacam o erário público. Somos gente boa”, remata o consultor.
Enquadramento legal
As administrações municipais são unidades orçamentais, e a execução das despesas deve obedecer às Regras de Execução do Orçamento Geral do Estado e demais legislação aplicável.
O jurista Cremildo Paca nota que “a despesa não pode ser paga sem que se verifique o facto gerador, que, no caso da prestação de serviço da administração municipal do Cuangar, seria a realização das actividades culturais, palestras sobre empreendedorismo e vacinação do gado”.
“A despesa foi paga, mas os serviços não foram prestados, ou seja, não se verificou o facto gerador da despesa, o que vai ao arrepio da lei, dos princípios e das normas de gestão financeira pública”, enfatiza o jurista.
O tempo da denúncia
Certamente, os factos narrados, as denúncias e justificações oficiais permitem duas leituras. Primeiro, no lugar da cultura da corrupção deve ser desenvolvida e fomentada a cultura de denúncia, por parte dos servidores públicos, de actos ilícitos e lesivos da vida e do bem-estar das populações. Segundo, o governo de proximidade só funcionará e será efectivo quando os cidadãos, a nível local, puderem aceder aos orçamentos locais e questionar como, onde e com que benefício se gasta cada kwanza.