Máscara Invisível: A Indelicadeza do Estado

Entreguei no primeiro de Junho deste ano ao Instituto Nacional de Defesa do Consumidor (INADEC) uma carta com uma amostra de um produto (um frasco de mel dito do Moxico) com o pedido de que se fizesse análise laboratorial ao mel, para aferir da sua pureza biológica. Depois de comprar o mel num supermercado, abri o frasco e notei que nem o aroma, nem a textura, nem tão-pouco a cor me pareciam corresponder ao mel. Até hoje, o INADEC não respondeu, nem sequer com um simples telefonema.

Este comportamento demonstra falta de respeito por parte de um órgão do Estado. Por tabela, é todo o Estado que nessa indelicadeza incorre, até porque não é a primeira vez (bem queria eu que fosse a última) que órgãos do nosso Executivo me faltam ao respeito. Das cartas que já dirigi aos órgãos do Governo central ou local, e até ao partido no poder e à Assembleia Nacional, ao longo da vida, nem um décimo receberam resposta. Pedidos de audiência junto de altos e de baixos responsáveis do nosso Executivo também tiveram a mesma percentagem de resposta. Notem que eu não tenho por hábito fazer estes pedidos, que não foram assim tantos. Mesmo assim, nem um telefonema, nem uma palavra, ainda que a negar a audiência. Nada.

Eu não sei bem que mundo é este que criámos em Angola, porque aprendi cedo na escola que, como diz o provérbio, “toda a carta tem resposta”. Quer dizer, há coisas que fazem parte da educação, da etiqueta e do civismo, mas não só. No caso de um órgão da Administração Pública, constitui dever do Estado responder às cartas dos utentes dos serviços e aos pedidos de agendamento com os respectivos titulares. Nem que seja – repito – para recusarem receber o cidadão.

Os pedidos têm de ser respondidos a tempo e horas, isto é, num prazo razoável a partir da data de entrada da carta, do requerimento ou registo verbal do pedido de audiência, da sua recepção pelo titular da pasta ou pelo seu chefe de gabinete, acompanhados do parecer  emitido. Se este processo levar mais de uma semana, muito mal se tem costurado o índice de produtividade do funcionalismo público em Angola.

É este parecer ou despacho de quem de direito que deve ser transmitido como resposta ao cidadão. Seja qual for o despacho. Mas algo tem de transpirar para fora do pulmão administrativo que bafeje o utente do serviço. O silêncio tumular é falta de respeito. Falta de consideração.

Assim anda o INADEC, como andarão outras entidades do nosso Estado, quase sem soluções para atender o simples pedido de um cidadão, de viva voz (via telefone) ou por ofício. É uma tristeza histórico-cultural, esta indelicadeza a que nos submete o nosso Executivo.

No ano passado pedi à secretária do administrador do município onde moro para marcar uma audiência com o seu chefe, devido a um pedido de licença de construção que tardava em ser atendido, já lá iam seis meses. Nem autorização nem desautorização. Não havia resposta. Eu queria saber a razão do Estado, queria ler o despacho oficial.

A audiência ficou marcada para daí a três dias, uma sexta-feira, às 9 horas. Como sou como os alemães, um maníaco da pontualidade – não tivesse eu fixado a máxima de Samora Machel segundo a qual “a pontualidade é um aspecto muito particular da disciplina” – entrei no recinto da administração às 8h45, dirigi-me à senhora da secretaria, que me levou a mim e à minha esposa para a sala de espera. As salas de espera da nossa Administração passaram a ser salas de tortura psíquica. Uma vez fiquei das 8 horas às 15 horas numa sala de espera de um ministério, até ser recebido por um senhor ministro. Desta feita, na administração municipal, comecei a criar gastrite quando o relógio bateu as 10 horas. Estava repleto de serviço, o jornalismo sério não se compadece com a indisciplina e a falta de agenda diária, mas desde que se vaticinou, já lá vão muitos anos, que “em Angola quem manda, manda, quem não manda, cumpre”, que remédio senão esperar, mordendo as carnes do estômago com os dentes consternados da alma.

O dito cujo administrador lá apareceu às 11 horas e fez o favor de nos receber. Fiquei estupefacto. Tratava-se de um “miúdo” na casa dos 30 anos! Recebeu-nos para nos dizer que ia ver o assunto e até me elogiou – “o nosso escritor  praqui, o nosso escritor pracolá” –, como seu eu tivesse ido ali para receber algum tipo de homenagem. Engoli em seco e retornámos aos respectivos serviços, eu e a esposa.

Mais tarde, soube que o administrador também era o primeiro-secretário do Comité de Acção do Partido MPLA (CAP) do meu bairro. Um duplo dirigente que nunca vi na minha rua. Até hoje, não recebi resposta. O assunto foi resolvido noutra esfera. Tenho as minhas dúvidas se esse CAP está mesmo a funcionar como quer o presidente do MPLA. Ai tenho, tenho.

O que mais me afectou naquela audiência, como em tantas outras, foi o facto de um “miúdo” me humilhar a mim e à minha esposa, pondo-nos “de molho” duas horas na sala de espera, como se nem os meus cabelos brancos nem o meu trabalho, que tem de ser cumprido com racionalidade de tempo, tivessem qualquer valor moral e económico para a sociedade. Geralmente, os nossos dirigentes fazem-nos esperar uma, duas, três, ou até sete horas como me aconteceu naquela outra audiência com um ministro, para, segundo me confidenciou o meu confrade Pepetela, nas suas vestes de sociólogo, fazerem vincar o seu poder de autoridade, para mostrarem quem manda aqui em Angola. Mas então quem manda, manda para humilhar os cidadãos dessa maneira? Eu já estive em actividades públicas que envolviam dezenas de crianças para serem vacinadas e o dirigente indicado para inaugurar a iniciativa demorou quatro horas para chegar ao local. Algumas crianças já haviam desmaiado, de tanto estarem de pé. Porque nunca se sabe se o dirigente chega meia hora, uma hora, ou dez horas mais tarde, então ninguém arredou pé do figurino montado. É por estas e por outras que eu peço encarecidamente ao titular do poder executivo, Sua Excelência Presidente João Lourenço, que ponha uma mão de ferro nesta indelicadeza do Estado. Nem o Senhor Presidente nem o nosso país merece este tipo de dirigentes malcriados, que nos faltam ao respeito desta maneira.

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