Vital Kamerhe Condenado: Combate à Corrupção em Angola e no Congo

Um dos homens fortes do presidente da República Democrática do Congo foi condenado por corrupção e branqueamento de capitais, num processo-relâmpago que durou menos de dois meses. Tal como João Lourenço, também Félix Tshisekedi parece estar a implementar no seu país um severo combate à corrupção, um dos maiores flagelos africanos. Importa, no entanto, que esse combate assente em mecanismos transparentes, não seja dinamizado por razões políticas e conte com a colaboração de um sistema judicial competente e imparcial.

Vital Kamerhe (na foto principal) – director de Gabinete de Félix Tshisekedi, presidente da República Democrática do Congo (RDC), antigo presidente da Assembleia Nacional e um dos articuladores da negociação que levou Tshisekedi à Presidência da República – foi condenado a 20 de Junho de 2020 por um tribunal do seu país, o Tribunal de Grande Instância de Kinshasa-Gombe, a 20 anos de prisão por corrupção e branqueamento de capitais.

Trata-se de uma decisão inédita, que pode ser muito importante para o país  e nos leva a uma primeira nota. A corrupção, quer sob o regime de Mobutu, quer depois com os Kabila, foi uma das características comuns aos regimes que governaram o Congo. Simultaneamente, como em Angola, parece que o Congo começou há pouco a sua luta contra a corrupção. Pode-se colocar a hipótese de estarmos perante um movimento alargado de combate à corrupção na África centro e sul, o qual já abrange pelo menos a África do Sul, Angola e a República Democrática do Congo. Há indícios claros disto mesmo na recusa por parte dos juízes do Supremo Tribunal do Malawi em receber subornos – os mesmos juízes que anularam uma recente eleição presidencial. É necessário que um idêntico comportamento anticorrupção seja adoptado em Moçambique.

Embora a tendência seja geral e surjam sempre os mesmos contra-ataques quanto à politização dos alvos, a ausência de julgamentos justos e a ilegitimidade das magistraturas para agirem contra os corruptos, cada país tem as suas especificidades.

Vejamos o caso do Congo, e depois as críticas que têm sido apontadas, com vista a uma comparação com Angola.

Vital Kamerhe não era um mero director do Gabinete do presidente da República: era ele próprio um candidato poderoso à presidência do país, em 2018, tendo firmado uma aliança com Tshisekedi. Em troca da sua desistência e do seu apoio, Tshisekedi comprometeu-se a nomeá-lo director de Gabinete. Portanto, Kamerhe não era um lealista de Tshisekedi, mas sim um concorrente político que, como prémio da sua desistência, ganhou um cargo no futuro governo.

O caso judicial que o envolveu é fácil de descrever. Vital Kamerhe foi detido numa quarta-feira de Abril de 2020, sob acusações de peculato (desvio de dinheiro público) no valor de US$ 57 milhões, um montante previsto para infra-estruturas e serviços médicos. Depois de interrogado, Kamerhe foi colocado imediatamente em prisão preventiva.

Aparentemente, Kamerhe geria um projecto de desenvolvimento de infra-estruturas no montante de US$ 304 milhões, dos quais US$ 47 milhões se destinavam à habitação social, no âmbito do novo Programa Presidencial para os primeiros 100 dias de mandato; outros US$ 10 milhões estavam atribuídos à compra de medicamentos. Foram estas verbas (para habitação social e medicamentos) que Vital Kamerehe foi acusado de desviar para empresas falsas. Rapidamente foi sujeito a julgamento e, a 20 de Junho último, condenado a uma longa pena de prisão.

O ponto essencial a sublinhar é que estamos perante uma situação nova e estimulante. Como afirmou um analista congolês: “O julgamento de Kamerhe é o primeiro da história em que um colaborador directo do presidente da República é levado à justiça por corrupção e é julgado rapidamente.” Este passo original já desencadeou elogios por parte das organizações de combate à corrupção, como a Unis, bem como por parte da oposição a Tshisekedi, representada pelo candidato presidencial que não foi empossado na recente contenda eleitoral, Martin Fayulu . Na verdade, este processo e condenação representam a primeira tentativa do presidente da República de cumprir as suas promessas eleitorais e os compromissos assumidos diante dos países ocidentais de implementar o Estado de Direito e combater a corrupção.

No entanto, as mesmas dúvidas que se colocam em Angola em relação às iniciativas do presidente João Lourenço contra a corrupção surgem também na RDC.

Félix Tshisekedi e João Lourenço, aquando de visita oficial do primeiro a Luanda,

A primeira dúvida diz respeito à politização do processo. Pode-se afirmar que esta foi uma das formas que Tshisekedi encontrou de se livrar de um incómodo aliado que lhe limitava o poder e a quem devia, em certa parte, a sua vitória. Afastando Kamerhe, o presidente da República fica com menos um obstáculo para o exercício do poder.

Na verdade, a acusação que muitas vezes se faz sobre a politização dos processos contra a corrupção é verdadeira, mas não tem o peso negativo que se lhe atribui. É evidente que um processo legal por corrupção contra um político ou a sua família tem sempre uma componente de poder, neste caso, de o afastar do poder. Seja na China com Xi Jinping, seja em Angola em relação aos familiares do antigo presidente, seja em Portugal contra o antigo primeiro-ministro. A questão é que é positivo e de congratular que haja coragem política para confrontar um político ou a sua família – é uma atitude de aplaudir e não de criticar.

O fundamental é que a decisão política de judicializar o combate à corrupção e acusar determinado político esteja fundamentada em factos ilícitos reais e concretos.

Portanto, considerar-se que o processo contra Vital Kamerhe é político, ou que obedeceu a considerações políticas é irrelevante. O importante é que exista um julgamento justo e que sejam produzidos factos concretos relevantes.

Esta é a segunda crítica que habitualmente se faz: os julgamentos não são justos e os juízes não estão preparados, pois fazem parte de uma máquina corrupta.

Na RDC, estas dúvidas foram especialmente referidas pela Conferência Episcopal Católica, uma força muito poderosa no país. Os bispos congoleses afirmam que “Existem muitos outros casos a aguardar justiça. (…) O desejo da Conferência Episcopal é ver justiça séria, justiça justa. E que as investigações (…) apresentem resultados convincentes”.

É evidente que o julgamento do director de Gabinete do presidente foi demasiado rápido: foi preso preventivamente em Abril e em Junho já está condenado.

Tal velocidade não é habitual no Congo, acontecendo apenas em processos conduzidos directamente no interesse do presidente efectivo à época.

No tempo de Mobutu, eram realizados julgamentos rápidos acerca de falsas tentativas de golpe de Estado para eliminar pessoas desafectas ao regime. Em 1966, o julgamento e execução dos mártires de Pentecostes realizou-se em menos de uma semana. Em 1975, o julgamento do golpe fracassado que condenou vários soldados, incluindo o ex-secretário particular de Mobutu, coronel Omba, que também foi chefe do Conselho de Segurança Nacional, correu num ápice. O mesmo aconteceu em 1977, com o julgamento de supostos “terroristas”, que permitiu ao regime de Mobutu sentenciar à morte vários jovens oficiais treinados nas academias militares ocidentais. Sob Joseph Kabila, houve a tentativa de condenar rapidamente Katumbi, político popular e potencial candidato à presidência, num caso de mercenários falsos, mas o procedimento nunca foi bem-sucedido.

O presente julgamento de Vital Kamerhe obedeceu, em termos temporais, ao paradigma de Mobutu: foi demasiado rápido, com o acréscimo de um dos juízes iniciais do processo ter morrido em circunstâncias que estão a ser alvo de escrutínio.

A importância do julgamento justo, assente em factos claros e apreensíveis, é fundamental. Se, neste caso, os factos parecem evidentes, já a velocidade do julgamento é suspeita. Os julgamentos não devem ser longos – justiça atrasada é justiça negada –, tal como não devem ser demasiado curtos, pois a justiça exige um equilíbrio e maturação que não se compaginam com a velocidade excessiva.

Mais uma vez comparando com Angola, podemos mencionar o tempo que está a demorar a constituição de Isabel dos Santos como arguida – dois anos, o que é inaceitável –, ao passo que o tempo que durou o julgamento da chamada Burla Tailandesa, que absolveu inicialmente o general Nunda e depois Norberto Garcia, foi perfeitamente adequado. Este julgamento durou quatro meses, entre Janeiro e Abril de 2019, e a investigação começou publicamente em Novembro de 2017. Portanto, um ano e meio no total, o que é razoável.

Além do problema da celeridade excessiva do julgamento de Vital Kamerhe, há o facto de a magistratura sempre ter estado envolvida com o poder político: ter uma imagem ligada à corrupção não inspira confiança nem oferece garantias. Os juízes do passado, que a sociedade reconhece como corruptos, são os que agora condenam a corrupção. Isto acontece na RDC, tal como acontece em Angola.

No entanto, apesar destas reticências, processo de Vital Kamerhe assume uma importância fundamental simbólica, pois augura que a RDC está a aderir a um movimento de combate à corrupção liderado pelos próprios países, sem necessidade de interferências externas abusivas.

E, aparentemente, não fica por aqui. Recentemente, o ministro da Justiça Célestin Tunda Ya Kasende foi detido por poucas horas, num incidente ainda não esclarecido. Este ministro é próximo do antigo presidente Kabila. Os apoiantes de Kabila no Parlamento, onde detêm a maioria, acabam de apresentar uma reforma judicial que retira poder aos juízes, e terá sido no contexto de um desentendimento entre Tshisekedi e o ministro (apoiante de Kabila e da reforma judicial) que se deu esta detenção.

Tudo indica que Tshisekedi está a tentar implementar uma política de combate à corrupção, tal como aconteceu em Angola, e nessa medida enfrenta a reacção proveniente das forças que sempre beneficiaram da corrupção.

Em Angola, as forças da reacção estão a ser comandadas por vários ex-governantes suspeitos, actualmente “refugiados” como deputados à Assembleia Nacional; se, na RDC, estas forças aparecerem comandadas por Joseph Kabila e seus apoiantes acoitados no Parlamento, isso é um sinal claro de que o combate à corrupção encabeçado por Tshisekedi está mesmo em marcha.

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