Invasão de Terras em Viana

No distrito urbano do Kikuxi, em Luanda, a invasão de terras transformou-se numa actividade bastante lucrativa de crime organizado, com o envolvimento de muitos agentes do Estado, conforme denuncia o administrador municipal de Viana, Fernando Eduardo Manuel. Este afirma o seu compromisso em combater o crime organizado, mas queixa-se da falta de colaboração de outras entidades de direito.

Segundo Fernando Eduardo Manuel, existe “falta de firmeza e determinação no combate a estas práticas” por parte de membros doComando Municipal de Viana, da Polícia Nacional e da Procuradoria-Geral da República, o que, no seu entender, tem sido um “calcanhar de Aquiles” no esforço para pôr cobro ao esbulho de terras na sua área de jurisdição.

Fonte judicial garante que há também juízes envolvidos no processo de esbulho de terras. Estes casos vão com frequência parar às mãos dos mesmos juízes, com os mesmos advogados, e as sentenças desfavoráveis aos invasores das terras não chegam a ser executadas, diz-nos a referida fonte.

Francisca Fortes, de 62 anos, é uma das vítimas da invasão de terras. Há dois anos, a sua quinta de oito hectares, no Kikuxi, foi invadida e vandalizada, assim como a de alguns vizinhos. Francisca Fortes explica que, em 2018, um “grupo de invasores” (grupo da Mireille e grupo do Sebas) se instalou no perímetro da sua quinta, e aí começou o pesadelo para os residentes da zona.

A denunciante descreve o modo operacional dos invasores: “Começam com actos de desestabilização. Primeiro, tentam conhecer os funcionários das quintas e procuram viver no bairro junto a elas. Depois de saberem a quem pertencem as propriedades, intimidam os trabalhadores, até estes abandonarem o seu trabalho e as quintas.”

Em Março de 2018, os invasores, como explica, espancaram os seguranças e os trabalhadores da sua quinta com recurso a catanas, pedras e outros objectos contundentes, forçando-os a fugirem. Quando Francisca Fortes se dirigiu ao local para averiguar o sucedido, refere ter sido brutalmente agredida com catanas por cinco indivíduos, um dos quais devidamente reconhecido como sendo o Sr. Sinistro, alegado chefe dos invasores. A agredida apresentou queixa à polícia, e os prevaricadores foram detidos.

Abaixo-assinado enviado pelos lesados de Kikuxi ao comandante provincial de Luanda.

Marcelina Antónia, que há mais de dez anos vivia na propriedade como caseira, descreve como, no dia seguinte, um grupo de trinta indivíduos se dirigiu, levando a cabo um forte tiroteio, à quinta onde ela ainda vivia. “Aquilo parecia guerra. Os invasores torturaram-me muito, até com catanas, para eu mostrar a casa da patroa. Ameaçaram que me matariam se não indicasse a casa dela, mas eu não conhecia mesmo”, afirma.

Como retaliação por ter apresentado queixa e na sequência da detenção dos cinco indivíduos que a espancaram, Francisca Fortes passou a receber ameaças de morte constantes por via telefónica, por parte de Sebas. Conta que, por ordem de um procurador, os suspeitos foram todos libertados, o que significou a continuação do seu calvário.

Segundo Francisca Fortes, após terem sido bem-sucedidos em desalojar quatro famílias que trabalhavam e viviam na sua quinta, ao longo de dois anos, os “invasores” dedicaram-se a destruir a sua propriedade e a dividi-la em parcelas para venda. Os danos, orçamentados em mais de 500 milhões de kwanzas, incluem: um sistema de rega com captação de água no canal do Kikuxi, bem como estações de bombeamento e tratamento de águas; a rede eléctrica, com uma linha de transmissão de dois quilómetros e meio, postes e posto de transformação; as instalações, que incluem dormitórios, refeitório, armazém, viveiros e oficinas contentorizadas.

A 8 de Abril de 2020, os invasores mataram, com golpes de martelo na cabeça, o conservador Josemar Caluaco, quando este tentou reclamar os direitos sobre uma parcela de terreno de 200 metros quadrados no Zango 4. Segundo Francisca Fortes, o grupo suspeito de ter assassinado o conservador é o mesmo que a espancou.

Sebas, um dos suspeitos do homicídio de Josemar Caluaco.

Entre Junho e Agosto de 2018, vários proprietários de quintas locais apresentaram queixas solidárias às autoridades competentes. Como resultado dessas queixas, inicialmente foram detidos sete “invasores”, incluindo o Sinistro, que se acoitava como vendedor de recargas no mercado, pois é deficiente motor. Acto contínuo, a 18 de Outubro de 2018, os lesados enviaram uma carta ao comandante provincial da Polícia Nacional em Luanda, na altura o comissário-chefe António Maria Sita, solicitando protecção policial na área afectada. Notam, nessa carta, que o suposto chefe dos invasores, Sr. Sinistro, apresentou, meses antes, documentos ao Posto de Comando Unificado para justificar a legitimidade dos actos do seu grupo, e continuou a agir com total impunidade e com a protecção das forças da ordem. Apesar de o investigador do SIC ter constatado a falsidade dos documentos, como se lê na carta, os detidos foram libertados. Em liberdade, “começaram a construir casebres nos terrenos, entraram por todas as quintas ainda não molestadas e começaram a bater, vandalizar e pilhar”, reclamam os peticionários.

“Os invasores receberam as armas e agrediram dois militares no terreno. E, mais uma vez, o Sr. Sinistro aparece no Comando Provincial de Luanda a entregar as armas, passando de invasor a vítima”, contam.

“Temos participado sempre os actos criminosos nos postos policiais do Zango 3, Zango 4, PCU (Posto de Comando Unificado), Comando Municipal de Viana e Administração Municipal de Viana”, refere Francisca Fortes.

“Sempre que a fiscalização e a polícia fazem alguma incursão na zona, os invasores confrontam-nos. São ousados, a polícia não os detém e a fiscalização permite-lhes que continuem a construir [em terrenos alheios] e a instalarem-se com documentos falsos”, afirma a denunciante.

Mas quem são esses “invasores”? Parecem ter tanto poder, que não se coíbem de perseguir os titulares das propriedades invadidas. “Quando lhes apetece, intimidam os proprietários e os funcionários novos que são contratados.”

Francisca Fortes descreve “um grupo organizado de mais de quarenta homens e mulheres que actuam em diferentes pontos [do município de Viana], disfarçados de pedreiros, camponeses e vendedores de terrenos, conforme a ocasião.”

O administrador municipal de Viana, Fernando Eduardo Manuel, em conversa com o Maka Angola, encara a invasão de terrenos como um dos problemas que “mais consome o seu tempo, assim como “o da Direcção de Fiscalização e da área jurídica”.

Segundo o administrador, a invasão de terras configura a prática de crime organizado, sustentado por agentes e autoridades da ordem, como efectivos da Polícia Nacional e funcionários das administrações municipais e distritais.

“Nos últimos tempos, esta prática ganhou novos contornos, com a participação de indivíduos sem escrúpulos, incluindo civis, militares (desertores e não desertores), elementos da Polícia Nacional, do SIC [Serviço de Investigação Criminal], membros da Administração Municipal e dos Distritos, elementos ligados aos órgãos da administração da justiça, enfim, todos funcionando como autênticas organizações do crime organizado, na ânsia de ganhar dinheiro vendendo lotes de terreno nos espaços invadidos”, esclarece o administrador.

“Os compradores podem ser cidadãos honestos ávidos de ter casa própria. Por essa razão, aventuram-se em comprar lotes a preços relativamente acessíveis para os mesmos. Há ainda grandes empresários, maioritariamente estrangeiros, que pretendem instalar indústrias ou grandes superfícies comerciais”, explica Fernando Manuel.

Pondo o dedo na ferida, o administrador de Viana denuncia a facilidade com que os suspeitos de crime organizado falsificam documentos para legitimar os seus actos ilícitos: “Como os valores em jogo são altos, os invasores permitem-se ao ‘luxo’ e atrevimento de corromperem funcionários de várias instituições para forjar documentos que demonstrem ser os verdadeiros titulares de tais espaços.”

Fernando Manuel sublinha que a acção dos invasores, para além de vários danos materiais, tem resultado em mortes: “Nessas acções, os invasores não respeitam cercas de arame, muros construídos em alvenaria, e não são poucas vezes que os guardas lá encontrados, ou mesmo os donos, são agredidos, por vezes até à morte.”

Até à data, Francisca Fortes continua com receio em regressar à sua propriedade e reclamá-la no seu todo, porque já não sabe distinguir entre bandidos e as forças da lei e da ordem. É extraordinária a linha ténue, praticamente inexistente, entre a lei e a ordem e o crime organizado na prática de esbulho violento de terras em Viana. Até quando?

* Por um lapso que lamentamos, a fotografia de Sebas começou por ser erradamente identificada com a própria vítima, Josemar Caluaco.

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