Um Corpo de Voluntários para o Estado de Emergência

A partir de amanhã (sábado), à meia-noite, entra em vigor o estado de emergência em Angola. É uma medida que se impõe. Durante os próximos 15 dias, haverá recolher obrigatório, de modo a conter a velocidade de propagação do coronavírus (covid-19) no país.

Contudo, a realidade dos últimos dias, desde que o presidente anunciou as novas medidas, é contrária ao esperado. Há verdadeiras enchentes por todo o lado, filas nos bancos e nos espaços comerciais, em busca de água, gás e de tudo um pouco. Ou seja, a declaração do estado de emergência parece estar a criar mais ajuntamentos e focos velozes de propagação do vírus.

Esta crise, que está a verificar-se à escala global, deve ser aproveitada pelo presidente João Lourenço para estabelecer um governo de proximidade com o povo, mas também, ou sobretudo, um governo de ideias. Há 45 anos que o MPLA, desde então instalado no poder, pede o apoio e a cooperação dos angolanos; quando não o consegue, requisita-o à força, ou seja, através do recurso à propaganda e à disseminação do medo. Sempre foi uma forma de governação assente na gestão quotidiana do improviso.

Mas os tempos, hoje em dia, são claramente outros.

É por isso que propomos à sociedade e ao governo a adopção de medidas de proximidade entre os cidadãos e as instituições públicas, e a criação de um corpo de voluntários de parceiros sociais. Este corpo, definido de acordo com as necessidades de sectores específicos, pode vir a ser um centro de ideias inovadoras e criativas para a resistência à pandemia e para a estruturação que se seguirá, no período pós-covid-19. No imediato e no futuro, este corpo deverá estar à disposição da comissão multissectorial de combate à pandemia.

O governo, por si só, não é capaz de transmitir confiança à população. Os modelos governativos têm sido um desastre para a maioria dos angolanos, e os métodos de aproximação entre governo e governados estão caducos. Após o covid-19, Angola enfrentará uma crise económica grave. É preciso renovar, repensar e prepararmo-nos, com a participação de todos, para que o estado de emergência não seja um disfarce para as insuficiências institucionais.

Esta também é uma oportunidade para o governo ouvir com atenção a inteligência que existe no seio da sociedade, numa altura em que a escassez de recursos limita a capacidade pulmonar dos consultores estrangeiros na máquina governativa.

Sabemos que, antes do covid-19, já nos debatíamos com dois vírus altamente letais para a população angolana: o vírus da negligência no seio do governo e o vírus da incapacidade de governar para o povo, em favor do povo. Hoje, no entanto, estamos aqui para falar de solidariedade e união em tempo de crise.

Para que pode servir um corpo de voluntários? Em primeira instância, para transmitir calma, mais confiança aos cidadãos e para elevar os níveis de solidariedade mútua.

As conferências de imprensa do governo sobre o covid-19 têm sido importantes para educar a população sobre o vírus e os cuidados que todos devemos observar. No entanto, há um conjunto de questões socioeconómicas, políticas e culturais a ter em conta e que precisam de ser pública e directamente afloradas pelo chefe do governo.

Medidas sociais

Em primeiro lugar, há que acautelar a protecção dos mais desfavorecidos da nossa sociedade. A maioria da nossa população vive da mão para a boca, ou seja, do comércio informal. Como é que aqueles que nada têm e dependem da “zunga” diária podem ficar em casa durante 15 dias sem comida? E nos municípios e nas zonas rurais?

É preciso garantir que durante o estado de emergência a população tem acesso a meios elementares de subsistência.

Com um corpo de voluntários, começando nos pensadores, é possível juntar um conjunto de ideias e mecanismos extraordinários para a organização, com medidas contingentes de higiene, da venda ambulante e nos mercados informais. Por exemplo, num conjunto de ruas, em determinado bairro, os vizinhos podem coligir informação sobre quem esteja a vender em casa, e quais alimentos, e passar a palavra. Esses vizinhos-voluntários podem visitar os vendedores e informar e propor medidas, de acordo com as condições locais, que evitem a contaminação.

As administrações municipais e os parceiros sociais devem estar empenhados em trabalhar conjuntamente, a nível local, durante a crise, sobretudo no domínio da informação. Fora dos centros municipais, as pessoas praticamente não têm acesso à informação. Menos de cinco por cento da população angolana tem acesso à internet, e nas áreas rurais a rádio mal chega. Há parceiros sociais com vasta experiência em assistência humanitária.

Os cidadãos com mais posses e as empresas podem contribuir para um banco alimentar, sob gestão desse corpo de voluntários e supervisão da comissão multissectorial, para dar apoio aos mais vulneráveis.

Há ainda o caso das áreas sem água. É preciso encontrar soluções práticas para essas áreas, de modo a evitar-se aglomerados como os divulgados nas redes sociais. Aqui, a repressão de pouco ou nada valerá. É fundamental, antes de mais, providenciar o essencial às pessoas, como água, para se garantir o distanciamento social e o recolher obrigatório, conforme a declaração do estado de emergência e seu regulamento. As redes sociais podem ser usadas por voluntários para ajudar a definir pontos de abastecimento e horários nos bairros, e assim contribuir para o esforço institucional.

O país pára, mas as pessoas não deixam de viver.

A linha da frente

Em segundo lugar, temos os hospitais e centros médicos. O coronavírus, apesar da sua escala global, é mais uma doença que se junta à malária, que é a principal causa de morte em Angola e é de fácil prevenção. O governo tem falhado na luta contra a malária porque não investe no saneamento básico, o ponto fulcral para se eliminarem os principais focos desta doença.

Nos hospitais, temos um exemplo de como a negligência institucional é mais letal do que o covid-19. No sábado passado, perto das 18h00, deu entrada no Hospital Américo Boavida um cidadão com suspeita de ser portador do vírus. É funcionário de uma sonda em alto-mar. Os médicos não tinham equipamento de protecção individual. Conforme depoimentos recolhidos pelo Maka Angola, todos os médicos e enfermeiros evitaram entrar em contacto com o suspeito, que permaneceu numa sala, sem atendimento, até ao dia seguinte.

Os médicos e os enfermeiros estão na linha da frente do combate à epidemia.

De acordo com vários relatos fidedignos, o suspeito fartou-se de estar na sala do hospital, a ser ignorado e evitado pela equipa médica, sem que tivesse sido isolado, como determinam os protocolos sanitários. Acabou por ir-se embora para casa. Não houve sequer desinfecção da sala onde ele esteve durante longas horas, ou das portas e superfícies em que ele tocou no hospital. No dia seguinte, domingo passado, uma cidadã proveniente do Brasil também recorreu aos serviços do Américo Boavida, com suspeita de infecção pelo vírus. Passou o dia sem ser observada, porque os médicos e restante pessoal hospitalar a evitavam a todo o custo; também não foi isolada; também se fartou e se foi embora.

A equipa médica de vigilância epidemiológica, treinada para o efeito e chamada de emergência ao hospital, não compareceu nem no sábado nem no domingo de manhã. Segundo fonte do hospital que acompanhou o caso, a referida equipa “tinha reuniões”.

De acordo com testemunhos de vários profissionais em serviço, só agora se deu início à montagem de tendas de isolamento, no quintal do hospital, para lidar com casos suspeitos de covid-19. Os treinos dos médicos para o uso dos fatos de protecção começam apenas na próxima segunda-feira.

“Estamos muito mal. Os médicos não querem aproximar-se dos pacientes. Estamos todos com medo”, desabafa um médico.

“Não estamos preparados. Não temos condições nos hospitais. Há restrições graves até na distribuição de máscaras e luvas para os médicos e enfermeiros. Os pacientes suspeitos vão-se embora e, se tiverem o covid-19, vão contaminar outras pessoas”, explica outra médica.

De acordo com os vários testemunhos recolhidos pelo Maka Angola junto de profissionais que formam a “linha da frente” no combate à pandemia, continua a não haver capacidade de fazer rastreio e testagem no segundo maior hospital do país. “Nem temos testes básicos aqui.”

“Só nos resta rezarmos para não termos uma catástrofe. O nosso governo está a brincar com uma situação grave. Tem tudo preparado no papel e não há condições nos hospitais”, lamenta um clínico.

Também aqui o corpo de voluntários pode ser útil, porque pode incluir empresas que se disponham a doar tempo e material para a montagem de tendas em tempo útil, nos sítios onde o governo declarar falta de recursos.

No campo da saúde, há outro problema delicado: a comunicação dos pacientes internados com os familiares. Regra geral, registam-se enchentes de familiares nos hospitais públicos, porque estes têm de providenciar alimentos aos enfermos, tratar da sua higiene, comprar medicamentos e cumprir toda a cadeia de esquemas instalados, lidando com a falta de comunicação eficiente. Um corpo de voluntários que inclua profissionais de comunicação pode contribuir para o estabelecimento de um sistema de comunicação adequado às medidas actuais, que responda à ansiedade dos familiares e retire esse peso do pessoal médico e auxiliar. Trata-se de prestar informação mínima, sem os detalhes que só os profissionais podem transmitir.

É imperioso adquirir e distribuir equipamentos de protecção individual, bem como material descartável para o pessoal médico e outros nos hospitais e nos centros de saúde. Sem a protecção dos médicos e do pessoal auxiliar, que estão na linha da frente, os discursos oficiais e o estado de emergência de nada servirão.

Segue-se a provisão de medicamentos básicos e de condições melhores nos centros de saúde periféricos para tratamento de doenças como a malária. Essa medida, segundo especialistas em saúde pública, reduziria drasticamente o número de pessoas que acorrem aos hospitais e evitaria as aglomerações nas grandes unidades.

Os centros de saúde periféricos por todo o país carecem de produtos básicos, como lixívia e sabão para desinfecção das mãos quer dos profissionais de saúde quer dos pacientes. Os voluntários podem realizar campanhas para que os comerciantes locais e outros façam doações desses produtos essenciais aos centros de saúde e se promova o cumprimento dos protocolos de distanciamento social e das regras de higienização.

Em terceiro lugar, é imperioso, para melhor apoiar as medidas governamentais, monitorizar os actos dos seus agentes. Nesta altura, muitos agentes públicos verão na crise uma oportunidade de facturação, de abuso dos mais fracos. É preciso estimular e exaltar os bons actos e denunciar os maus. Afinal, é o próprio presidente quem apela insistentemente para se corrigir o que está mal.

E a economia?

A um nível mais estruturado e visando o futuro menos imediato, o governo deve facilitar o estabelecimento de um corpo de voluntários com experiência e recursos, capaz de gerar ideias quanto à recuperação socioeconómica, após a passagem da pandemia.

Como sabemos, a economia nacional já há algum tempo que se encontra depauperada por conta da pilhagem, da má gestão e das más políticas económicas de governação.

O OGE deste ano foi projectado com o preço do petróleo a 55 dólares – porque continuamos a viver quase exclusivamente das receitas do petróleo – e este já está abaixo dos 25 dólares.

Temos de salvar as pessoas e temos de salvar a economia, porque só assim será possível gerar os recursos para salvar mais pessoas. Para isso, precisamos absolutamente de novas ideias. Vamos a isso?

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