Os Desembargadores sem Mesa

A Mesa do Desembargo do Paço foi durante vários séculos o Tribunal Supremo de Portugal, e  os juízes que se sentavam a essa Mesa eram os desembargadores. Ora, parece que nos nossos dias, em Luanda, há desembargadores, embora não haja Mesa.

Conta-se que a rainha Isabel II comentou com Boris Johnson, quando o convidou pela primeira vez para formar governo na Grã-Bretanha, que não percebia como é que alguém desejaria ocupar um lugar tão desgastante e complicado. A mesma interrogação pode ser colocada acerca do cargo de presidente do Tribunal Supremo em Angola. Joel Leonardo herdou várias casos e circunstâncias totalmente desaparafusados, possivelmente sem conserto imediato, e qualquer solução que ele encontre será sempre má – a questão é escolher a menos má.

Um primeiro caso foi o da designação do novo presidente da Comissão Nacional Eleitoral (CNE). Depois de várias peripécias, lá se escolheu um magistrado para ocupar o cargo. Acontece que esta decisão foi precedida de inúmeras irregularidades já denunciadas em várias publicações e aqui também, e não reúne qualquer consenso com o principal partido da oposição, a UNITA, que tem vindo a repudiar com veemência esta atribuição.

Em todo este processo, há um singelo detalhe que sempre impressionou, pois revela a forma comprovadamente arbitrária como tudo se passou. Para a classificação dos vários candidatos que serviu como base à escolha do vencedor houve um critério denominado “Experiência eleitoral”. O candidato vencedor surge classificado nesse requisito com 15 pontos, tendo ficado em primeiro lugar. Não se discute esta pontuação. Mas fica-se surpreendido ao ver que outro candidato, que foi juiz do Tribunal Constitucional, obteve uns bizarros 5 pontos na mesma categoria. O Tribunal Constitucional é o tribunal eleitoral, onde se tomam as decisões finais sobre eleições, presumindo-se, portanto, que aí se encontrem os profissionais mais aptos a lidar com disputas eleitorais. Assim sendo, como é possível desvalorizar o exercício do mandato no Tribunal Constitucional para efeitos de “Experiência eleitoral”? Na verdade, não é, e são justamente estes manifestos atropelos que colocam em causa a legitimidade do presidente escolhido para a CNE.

Contudo, o caso que hoje nos ocupa é o dos novos juízes desembargadores. Trata-se de outra história plena de peripécias e que foi alvo de uma gestão desastrosa por parte do anterior presidente do Tribunal Supremo. Além dos problemas e da discussão de variadas irregularidades na selecção dos juízes, chegando-se ao fim dos procedimentos não há tribunais para colocar os desembargadores. Recorrendo a designações arcaicas, não há Mesa para os desembargadores!

Aparentemente, em Benguela já existe um edifício pronto para colocar os juízes, ao passo que em Luanda nem isso. A isto acresce alguma confusão legal. Se bem que exista a Lei Orgânica dos Tribunais da Relação (Lei n.º 1/16, de 10 de Fevereiro), que cria e determina competências aos Tribunais da Relação, e também sendo certo que os velhos Códigos de Processo contêm normas sobre os recursos para a Relação (veja-se, por exemplo, os artigos 676.º e seguintes do Código do Processo Civil), não é claro que já tenha sido verificada a perfeita compatibilização entre a Lei Orgânica, designadamente os seus artigos 21.º e 28.º, sobre as matérias abrangidas pelos recursos, e os artigos 676.º e seguintes do Código do Processo Civil. No entanto, os artigos sobre o recurso de revista foram revogados pela Lei n.º 20/88, de 31 de Dezembro. Não querendo entrar em tecnicismos, o ponto é o seguinte: aquando da elaboração do Código do Processo Civil, nos anos 1960, havia uma tendência para limitar os recursos para o Tribunal da Relação a matérias de direito. Actualmente, embora não se considere que a Relação deva fazer um segundo julgamento, existe maior amplitude de avaliação da matéria de facto. Tal acaba por vir expresso nas diferentes leis em vigor. O Código do Processo Civil será mais restrito do que a Lei Orgânica do Tribunal da Relação. Possivelmente, teria sido melhor acompanhar a instituição dos Tribunais da Relação com revisões ou novos Códigos do Processo Civil e Penal. É muito possível que assim esteja tudo absolutamente confuso.

Em resumo: neste momento, há juízes, mas não há tribunais, e subsistem muitas dúvidas legais. Para já, o Tribunal Supremo “resolveu” o problema, tornando os desembargadores numa espécie de auxiliares do Tribunal Supremo, deixando-os adstritos às Câmaras deste tribunal superior. Contudo, esta não é uma solução eficaz. Há que terminar as obras dos tribunais, instalar os juízes nas suas mesas e pôr em funcionamento as leis processuais, de modo a certificar a sua compatibilização e prontidão para entrar em funcionamento. Rapidamente.

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