A Impossibilidade dos Acordos com Isabel dos Santos

O frenesim continua, desta vez com um putativo anúncio de negociações que estariam a correr entre a Procuradoria-Geral da República de Angola (PGR) e advogados representando Isabel dos Santos, com vista a um acordo global por meio do qual esta devolveria o suposto dinheiro desviado do Tesouro angolano e o Estado poria fim aos vários processos criminais, cíveis, arrestos e outros contra ela. Entretanto, a PGR rapidamente desmentiu a existência dessas negociações, negando-as categoricamente de forma clara e incisiva.

Existindo ou não negociações, a verdade é que, por duas razões diferentes – de natureza legal e política – não é possível concretizar um acordo entre o Estado angolano e Isabel dos Santos.

Impossibilidade legal

Em primeiro lugar, do ponto de vista legal, não há nenhuma legislação que permita à PGR “negociar” acerca de uma panóplia de processos legais e factos tão abrangentes como os que envolvem Isabel dos Santos. Admitindo por hipótese que a PGR fixava em mil milhões de dólares o montante dos valores que Isabel tivesse recebido ilicitamente do Estado, tal não lhe dava poder para desistir de processos contra Isabel caso esta devolvesse o mesmo valor de que usufruiu.

Procedendo a uma pesquisa sumária, a norma que mais se aproxima de tal possibilidade é o artigo 57.º da Lei das Infracções Subjacentes ao Branqueamento de Capitais, que determina em certas condições a extinção da responsabilidade criminal (i.e., deixar de haver processo-crime) relativamente aos crimes previstos nos artigos 412.º a 425.º e 453.º do Código Penal, se houver devolução dos montantes. Ora, estes são os crimes de furto e abuso de confiança. Relativamente a outros crimes, como associação criminosa, burla, corrupção ou peculato, não se vislumbra essa possibilidade. O que as normas penais usualmente referem é que as penas serão reduzidas, no caso de devolução dos montantes desviados.

O procurador-geral da República não tem poderes constitucionais nem legais para terminar procedimentos criminais no caso de crimes que não sejam o abuso de confiança e o furto. Em caso de devolução de montantes, quem, na maioria dos casos, poderia reduzir ao mínimo as penas aplicadas a Isabel dos Santos seriam os juízes do respectivo processo, e a PGR não pode antecipar decisões de juízes, sob pena de violar o princípio da separação de poderes e descredibilizar totalmente o poder judicial.

Muitos podem contra-argumentar que estas limitações legais não impediram o famoso acordo estabelecido entre a PGR e Jean-Claude Bastos de Morais a propósito do Fundo Soberano. Aparentemente, neste caso, a PGR alcançou um entendimento com Jean-Claude: ele “devolveu” os três mil milhões de dólares do Fundo Soberano, e saiu em liberdade da sua prisão preventiva, com o compromisso de que não seria processado. É verdade que este acordo permitiu receber o dinheiro de volta e Jean-Claude pôde recomeçar a sua vida noutro lugar do mundo. Contudo, é um acordo que não vale nada em termos legais. Neste momento, em teoria, a PGR pode, sem qualquer constrangimento, desencadear um procedimento legal contra Jean-Claude. Não há nenhuma restrição, espécie de amnistia ou acordo judicial homologado por um juiz que garanta qualquer direito a Jean-Claude Bastos de Morais. E, se este indivíduo não quererá ter muito mais a ver com Angola, o mesmo não se dirá de Isabel dos Santos.

Na presente situação normativa, não existem mecanismos legais que permitam um acordo pleno e permanente entre o Estado angolano e Isabel dos Santos. Pelo contrário, a PGR está obrigada, pelo Princípio da Legalidade, a investigar e prosseguir investigação de todos os factos susceptíveis de constituírem um crime de que tenha conhecimento, como aliás a própria instituição enfatiza no desmentido emitido acerca das negociações com Isabel dos Santos. Utilizando o jargão jurídico, este Princípio da Legalidade determina que a PGR está vinculada a agir processualmente sempre que adquire notícia do crime. Isto é, a PGR, sempre que sabe da prática de um crime, é obrigada a abrir instrução preparatória e concluir uma investigação, como decorre do artigo 185.º, n.º 2 da Constituição da República de Angola, sendo de rejeitar juízos de oportunidade ou conveniência (ou seja, não compete à PGR decidir sobre se vale a pena ou não investigar; é obrigada a investigar). Esta estipulação legal existe para evitar que a PGR actue segundo a vontade individual e os interesses de cada um, podendo apenas obedecer à lei, que deve ser superior às pessoas.

Impossibilidade política

Todavia, se existem impedimentos, em termos legais, para qualquer acordo com Isabel dos Santos, o facto mais determinante para essa impossibilidade é político.

Qualquer acordo será uma derrota de João Lourenço e da sua campanha contra a corrupção. Da mesma maneira que o anúncio dos processos contra Isabel dos Santos demonstrou que ninguém, absolutamente ninguém, estava acima da lei e que todos poderiam ser investigados, também a desistência destes processos teria o efeito contrário. Isabel dos Santos tornou-se um símbolo da determinação do presidente e dos órgãos judiciários do país em combater a corrupção. A partir do momento em que ela pague, nem que seja mil milhões de dólares, isso vai demonstrar que o Estado está à venda e que tudo dependerá do preço. O sinal será devastador, e abre um precedente gravíssimo. Para quê haver empenho no combate à corrupção, se no final de contas é uma questão de aritmética ou de poder financeiro? Na verdade, este tipo de acordo tornar-se-á um incentivo ao maior e mais rápido saque. Torna-se importante “roubar” muito e depressa, porque depois poderá ser preciso devolver alguma coisa se houver um processo legal, pensarão os futuros saqueadores do Estado. Deste modo, os “marimbondos” que se seguem desviarão ainda mais recursos, a contar com uma eventual percentagem para devolução com vista a evitar processos legais.

Consequentemente, o hipotético acordo estabelecido num caso tão simbólico dará um sinal péssimo sobre a seriedade e eficácia do combate à corrupção.

Mas existe uma questão adicional, talvez mais relevante, na óptica do poder político. Como referimos acima, Isabel dos Santos não é Jean-Claude Bastos de Morais, e não irá, depois de qualquer acordo, “gozar” os milhões que lhe restam no estrangeiro. É filha primogénita do antigo presidente. Um acordo com a PGR apenas lhe dará fôlego e espaço para vir confrontar e derrotar a política de João Lourenço. Aquilo que possa parecer hoje uma vitória de Lourenço a favor do Estado angolano – que receberia mil milhões de dólares de volta – será visto no futuro como uma fraqueza do presidente, e na verdade constituirá o início da sua derrota e o fim do seu combate à corrupção. Até porque a opinião pública ficará sempre com a sensação, não interessa se verdadeira ou falsa, de que Isabel dos Santos deveria muitos mais milhares de milhões, e teria usado a informação comprometedora de que disporia sobre outros para garantir o acordo. Tudo isto fragilizaria João Lourenço.

Certo é que neste momento está em curso um combate pela sobrevivência do Estado angolano, e sobretudo pela necessidade de permitir à população que, finalmente, tenha acesso às riquezas do país. É aí que deverá centrar-se a atenção institucional.

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