O Congo e Isabel dos Santos

Deixemos, por uns minutos, o frenesim mediático à volta de Isabel dos Santos, e debrucemo-nos sobre outros acontecimentos interessantes em curso em Angola.

Mais uma vez, o presidente João Lourenço esteve reunido com Félix Tshisekedi, presidente da República Democrática do Congo, desta feita em Benguela.

Do encontro resultou um comunicado em que se informou que os dois dirigentes tinham tratado de assuntos referentes à Zona de Interesse Comum da exploração petrolífera e analisaram as consequências da decisão do Tribunal Provincial de Luanda, que arrestou os bens de Isabel dos Santos e do marido, Sindika Dokolo. A propósito deste assunto, que ocupa a maior parte do comunicado, ambos os presidentes afirmaram o seu compromisso firme no combate à corrupção e à impunidade, bem como o empenho decisivo na transição pacífica dos dois países rumo à democracia e ao progresso.

Parece que afinal, ao contrário do que começámos por referir no início do texto, a questão de Isabel dos Santos também faz parte das relações entre Angola e o Congo-Kinshasa, e a reunião entre os presidentes esteve ligada ao actual tema quente.

Não é de estranhar que o combate à corrupção e os problemas levantados pelos antigos poderosos do país façam parte das preocupações comuns de Lourenço e Tshisekedi.

O actual presidente do Congo ocupa o cargo desde Janeiro de 2019, tendo sucedido a Joseph Kabila, que foi presidente durante 18 anos. Tal como José Eduardo dos Santos fez a Lourenço, Kabila deixou o poder armadilhado. Na verdade, no Congo, a influência de Kabila ainda se faz sentir de modo determinante, uma vez que a Constituição, ao contrário da angolana, não confere amplos poderes ao presidente da República. É uma Constituição semipresidencialista. Assim, Tshisekedi tem de viver com uma maioria parlamentar e um primeiro-ministro da confiança do seu antecessor, que, tendo entregado a presidência da República, não entregou o Parlamento. Claramente, Kabila foi mais hábil do que Dos Santos. O caminho que Tshisekedi tem de percorrer é muito longo e árduo.

Na verdade, os principais problemas dos dois presidentes são idênticos: países extremamente corruptos, onde uma pequena elite se apropria da maior parte dos recursos. Neste sentido, afigura-se que João Lourenço está a tentar formar nesta zona de África um bloco reformista, apostando na reconfiguração dos regimes políticos e livrando-os o mais possível da corrupção. Poderá ter encontrado um aliado necessitado em Tshisekedi. Há aqui, como possibilidade em forja, uma aliança pró-democracia e pró-progresso que seria inédita nestes dois países. Essencialmente, Angola e a RDC conheceram bem, ao longo da sua história, as guerras, a rapina e a pobreza.

Lourenço já tinha desempenhado um papel influente na transição pacífica no Congo entre Kabila e Tshisekedi. Várias fontes confirmam o seu papel fundamental em convencer Kabila a afastar-se, garantindo-lhe santuário em Angola, se necessário, e no apoio que tem dado ao novo presidente congolês, quer no fortalecimento do seu poder, quer a lidar com o Ruanda.

Todavia, além do fortalecimento das relações entre os dois países e da criação de um bloco anticorrupção entre Angola e o Congo, um outro tema deve ter sido abordado pelos dois líderes. Como se sabe, Sindika Dokolo é congolês (além de dinamarquês e angolano), pertencendo a uma família rica do tempo de Mobutu. O seu pai, Augustin Dokolo, foi um dos principais banqueiros do ditador Mobutu, antes de ter caído em desgraça e ficado sem banco. O próprio Sindika entrou em rota de colisão com o anterior presidente Joseph Kabila, acabando por ser condenado, por um tribunal congolês, a um ano de prisão devido a determinados negócios. Tal impediu-o de entrar no país durante uns tempos.

Após a eleição de Tshisekedi, Sindika aproximou-se muito do novo presidente. Aliás, ainda em Abril passado, Tshisekedi recebeu Sindika e Isabel dos Santos durante uma visita a Washington, e posteriormente utilizou os variados contactos de Sindika em Bruxelas para preparar uma visita de sucesso à Bélgica. Um entendimento próximo entre Sindika e Tshisekedi estava, portanto, em formação.

Ora, é possível que João Lourenço, que apoiou Tshisekedi, não queira ter Sindika a conspirar contra si do outro lado da fronteira. É tradicional na história de Angola a utilização da República Democrática do Congo como plataforma de ataque ao poder estabelecido em Luanda. Mobutu foi mestre nessas andanças.

Temos então aqui uma situação muito estimulante, do ponto de vista da análise. Lourenço e Tshisekedi são aliados no combate à corrupção. Tshisekedi precisa de Lourenço para se autonomizar de Kabila e criar o seu próprio espaço político e de poder. Por sua vez, Lourenço necessita que o Congo não sirva de base para ataques de Sindika, o marido de Isabel dos Santos, ao poder de Luanda.

Em resumo, esta reunião teve muito mais a ver com Isabel dos Santos do que se julgaria à partida, mas também pode estar a criar um bloco regional novo de combate à corrupção e de promoção de transições políticas pacíficas.

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