Sonangol: o Golpe de 152 Milhões de Dólares

Inicialmente, o Estado oferece um terreno à filha do presidente – contíguo ao Condomínio Cajú, da Sonangol – no Talatona, em Luanda. Há uma rectificação, e esta paga 250 mil dólares, em 2005, a um dólar por metro quadrado. A seguir, vende-o a uma empresa privada por 18 milhões de dólares. Em 2008, o mesmo Estado, já representado por Manuel Domingos Vicente, enquanto patrão da Sonangol, compra o referido terreno, “miraculosamente” expandido a 338,812 metros quadrados, por 152 milhões e 465 mil e 400 dólares! Qual foi o esquema?

A 6 de Março de 2008, o então presidente do Conselho de Administração da Sonangol, Manuel Vicente, assinou o contrato-promessa de cessão de direito de superfície com a empresa-fantasma Multimarket, Comércio Geral S.A. Esta foi representada, conforme o contrato, pelo seu então presidente do Conselho de Administração, o brasileiro Ary Pignatari Mahet, e pela vice-presidente, Paula Cristina da Costa e Sousa.

Logo a seguir à assinatura do contrato, a Sonangol pagou metade do valor total, 76,2 milhões de dólares, tendo o remanescente sido pago dois meses depois, para uma conta da Multimarket.

Contrato com assinatura falsa

Contactado pelo Maka Angola, Ary Pignatari Mahet nega ter assinado o referido contrato. “Parece a minha assinatura, mas não é. Nunca assinei esse contrato. Com certeza essa assinatura não é minha. Estou muito preocupado com a burla e accionarei os mecanismos legais para confrontar essa burla. Isso é burla. Quero ir até às últimas consequências”, explica-se.

Mahet refere ainda nunca ter sido eleito ou indicado presidente do Conselho de Administração da empresa e confirma: “Nunca fizemos qualquer negócio com a Multimarket.”

Os dados de contribuinte emitidos pela Administração Geral Tributária, a que este portal teve acesso, indicam que o volume de negócios da empresa, de 2006 a 2012, foi de zero kwanzas e que a mesma nunca teve funcionários sequer. Em 2012, foi encerrada por “incumprimento fiscal”. Ora, essa empresa movimentou 170 milhões de dólares e nunca pagou um kwanza ao fisco.

Para atestar a sua inocência, no passado dia 16, Mahet depôs voluntariamente na Inspecção-Geral da Administração do Estado (IGAE), para requerer uma investigação oficial ao caso.

O caso é então este: o Estado fez negócio com uma empresa que nunca teve qualquer actividade, registando perdas financeiras de mais de 60 mil por cento, segundo um analista financeiro internacional.

“Há, claramente, um crime público por fraude, branqueamento de capitais e possível fraude fiscal. Deve haver uma investigação imediata do Ministério Público”, refere o analista.

A advogada da Sonangol

O Maka Angola teve acesso a um documento que confirma a participação da reputada advogada Ana Paula Godinho na elaboração do contrato da Sonangol com a Multimarket e de todo o expediente de transferência directa do direito de superfície da Luzy para a Sonangol.

A prestação de serviços reportava-se à elaboração de contratos e legalização de terrenos vendidos pela Multimarket, marcação de escrituras, pagamento de imposto de SISA, e o registo matricial e na conservatória do registo predial de benfeitorias a construir em tais terrenos.

No contrato entre a Sonangol e a Multimarket, há também a referência ao facto de a “vice-presidente do Conselho de Administração” ter passado uma procuração a Ary Mahet para a representar no acto.

Ana Paula Godinho diz não ter autorização do seu cliente para falar sobre o negócio.

Na altura da elaboração do contrato, entrou em vigor o Regulamento sobre a Lei de Terras, que só permite a venda de terrenos depois de cinco anos de posse. No contrato, nota-se a opção da passagem directa do direito de superfície da Luzy para a Sonangol.

O terreno oferecido a Tchizé dos Santos, contíguo ao Condomínio Caju, da Sonangol, no Talatona, Luanda.

A versão de Manuel Vicente

No encontro com o Maka Angola, o ex-vice-presidente da República explica como assinou o contrato sem conhecimento da falsidade da outra parte.

Primeiro, explica que o então gestor da Cooperativa Cajú (da Sonangol), Carlos Cunha, lhe apresentou uma proposta de expansão do Condomínio Cajueiro, tendo solicitado a aquisição do terreno em questão.

Manuel Vicente diz ter instruído o responsável pela Sonangol Properties (SONIP), Orlando Veloso, no sentido de tratar da aquisição do terreno “com o gabinete jurídico da Sonangol e o escritório de advogados [de Ana Paula Godinho]”.

“Foram estas entidades [Orlando Veloso, gabinete jurídico e Ana Paula Godinho] que realizaram todos os procedimentos necessários à contratação”, afirma. “Quem tratou de tudo e me levou os documentos para assinar foi o engenheiro Veloso”, afirma.

O Maka Angola tentou contactar Orlando Veloso para ouvir o seu testemunho, mas sem sucesso.

Manuel Vicente esclarece ainda que a Sonangol tinha, para o efeito, contratado o escritório de advogados para “garantir a legalidade dos contratos”. Sobre a falsificação da assinatura da Multimarket e o facto de esta empresa nunca ter funcionado ou realizado qualquer actividade, Manuel Vicente manifesta também a sua surpresa. Reitera o cuidado que teve em engajar o seu gabinete jurídico e uma advogada reputada “para garantir a legalidade do acto”.

Todavia, o antigo PCA da Sonangol não se demarca das suas responsabilidades enquanto responsável máximo da empresa. Enfatiza apenas que não havia condições para assinar todos os contratos de forma presencial, dada a dimensão e diversificação de negócios da Sonangol, e, por conseguinte, “havia delegação de responsabilidades”.

“Acima dos cinco milhões de dólares, os responsáveis das áreas tinham de ir a despacho comigo e eu aprovava os contratos conforme as justificações que me apresentavam”, acrescenta.

No caso do terreno, “o engenheiro Veloso disse-me que estava tudo em ordem e tudo legal, conforme o parecer da advogada, e eu assinei”, esclarece.

“Quando era a outorga de concessões petrolíferas, tínhamos sempre presente a conservadora. Realizávamos sempre esse processo de forma presencial, por causa do engajamento internacional”, exemplifica.

Manuel Vicente justifica ainda o valor do negócio: “Foi na altura do boom da imobiliária e o negócio foi bom. Havia terrenos a serem vendidos a 600 dólares por metro quadrado e nós compramos por 450 dólares.”

Sobre as peripécias do terreno, da sua oferta inicial pelo Estado e a compra a posteriori, Manuel Vicente nega ter tido qualquer conhecimento prévio.

A arquitectura do golpe

Recapitulemos o início da trajectória deste terreno, actualmente murado, tomado pelo capim e com uma pequena fracção usada para parqueamento de viaturas rebocadas por mau estacionamento pela fiscalização do governo provincial de Luanda.

Este terreno já havia sido “extorquido” à Imobiliária Atlântico, SARL (IA). A 13 de Agosto de 2004, a IA firmou um contrato com a Empresa de Desenvolvimento Urbano de Luanda (EDURB), no valor de 22 milhões de dólares, para a aquisição do direito de superfície de 549 mil e 415 metros quadrados.

Aquando da publicação da primeira investigação, fonte do Maka Angola denunciou ter a EDURB sofrido “chantagem” do então governador de Luanda, general Higino Carneiro, do então todo-poderoso general Leopoldino Fragoso do Nascimento “Dino” – o pau para toda a obra de José Eduardo dos Santos – e do então director da Sonangol Properties (SONIP), Orlando José Veloso.

De seguida, o general Higino Carneiro, na altura coordenador da Comissão de Gestão de Luanda [governador], “ofereceu” a Tchizé dos Santos, deputada do MPLA e filha de José Eduardo dos Santos, os 250 mil metros quadrados subtraídos à IA. Segundo Tchizé, houve correcção na “oferta”, e ela pagou 250 mil dólares pelo terreno.

Por sua vez, a deputada vendeu o terreno a uma empresa privada por 18 milhões de dólares, informação por si confirmada ao Maka Angola, sem mencionar o nome da empresa compradora. Para a presente investigação, Tchizé dos Santos referiu ter passado uma procuração ao advogado Walter Virgínio Rodrigues, para negociar a venda do terreno em nome da Luzy. “Alienámos o terreno e fomos pagos. O resto não é da minha conta. Nem tem que ser”, refere a deputada do MPLA.

Investigações posteriores permitem a este portal revelar então as peças em falta neste puzzle do terreno, e corrigir o valor da venda à Sonangol.

A deputada do MPLA vendeu o terreno, através da sua empresa Luzy – Sociedade de Gestão de Negócios, Lda., à empresa-fantasma Multimarket, Comércio-Geral S.A.

Conforme consta em Diário da República, a Multimarket foi estabelecida em 28 de Abril de 2006, com um capital de 22 mil dólares, por Cláudio Filipe de Almeida Barros Vinhas, Rui Carlos da Costa, Kelson Francisco da Costa, Paula Cristina da Costa e Sousa e o brasileiro Ary Pignatari Mahet. Todavia, a empresa apenas saiu publicada em Diário da República a 8 de Novembro de 2006.

De forma curiosa, a Multimarket tinha como endereço a sede do Grupo Valdomiro Minoru Dondo, no 1.º andar do Edifício Kalunga Atrium, à Rua Engrácia Fragoso, n.º 55.

Outra perspectiva do terreno, de excelente localização, que está no centro desta fraude.

Quem são estes personagens?

Cláudio Vinhas é o director financeiro do grupo Valdomiro Minoru Dondo (VMD). Já na altura do contrato, era financeiro e homem de confiança do empresário brasileiro. Valdomiro Minoru Dondo é uma figura transversal à maior teia de parcerias empresariais com os maiores predadores do país – Pessoas Expostas Politicamente – ou, como os classifica o presidente João Lourenço, os “marimbondos”.

Cláudio Vinhas tem exercido também funções como director financeiro do Comité Miss Angola, propriedade da ex-primeira-dama Ana Paula dos Santos, cujo presidente do Conselho de Administração é Minoru Dondo.

Ary Pignatari Mahet era, na altura, representante comercial do grupo VMD. Actualmente, é gerente do call-center Solução Contact Center. Esta empresa é detida em 49 por cento por Valdomiro Minoru Dondo, através da TV Sat, enquanto a Moontalk, do grupo GENI S.A., pertencente ao general Leopoldino Fragoso do Nascimento “Dino” e a António “Toninho” Vandúnem, controla 51 por cento da quota social.

Paula Cristina da Costa e Sousa é, desde então, assistente pessoal e confidente de Minoru Dondo.

Rui Carlos da Costa trabalha como relações públicas do Grupo VMD há mais de 20 anos. Também subscreve como accionista “laranja” da TV Sat.

Kelson Francisco da Costa, conhecido como Cupido, é filho de Rui Carlos da Costa.

Mais uma vez, Ary Mahet nega alguma vez ter assinado contrato com a Luzy. “Estamos a falar de mais de 170 milhões de dólares (total da compra e venda) que circularam nas contas da empresa. Isso é absolutamente inverídico”, reitera.

Quando os sócios Ary Mahet e Rui Carlos da Costa confrontaram Ana Paula Cristina de Sousa sobre os negócios com a Luzy e a Sonangol, esta também negou ter conhecimento. “A Paula jura por Deus nunca ter passado nenhuma procuração para um negócio de tal magnitude”, transmite Ary Mahet.

Por sua vez, através de um intermediário, Minoru Dondo argumenta que contribuiu para a criação da empresa porque era uma forma de apoiar os seus funcionários. Realça, também, que a mesma nunca teve qualquer actividade. Numa segunda visita, o seu emissário manifestou também o interesse de Minoru Dondo numa investigação oficial sobre este extraordinário esquema.

Rui Carlos da Costa manifesta-se simplesmente chocado com o facto de o seu nome e o do seu filho terem sido usados, como sócios, sem que alguma vez tenham tido conhecimento de qualquer actividade da empresa. “Nem sabíamos da existência dessa conta bancária para onde foi parar o dinheiro”, denuncia.

“Estamos revoltados. Nós [incluindo o filho] fomos traídos. Nunca soubemos dessa operação ou de qualquer outra”, desabafa Rui Carlos da Costa, sem mencionar o nome do “traidor”.

“Nós nunca reunimos sequer em assembleia para eleger os órgãos sociais ou nomear gerentes”, enfatiza.

Contrato lesivo mas legal?

Recentemente, a directora nacional de Recuperação de Activos da Procuradoria-Geral da República (PGR), Eduarda Rodrigues, veio a terreiro explicar como contratos altamente lesivos para o Estado são lícitos e, por conseguinte, isentos de responsabilidade civil ou criminal. Ou seja, certificou a impunidade dos que roubaram o Estado através de contratos lesivos, mas lícitos. Este é o novo paradigma jurídico-político angolano.

Temos então um contrato altamente lesivo para o Estado, com uma empresa-fantasma, representada por um falsário, que rapou 152 milhões de dólares do erário público.

Nesse caso, seguindo a lógica adoptada pelo governo de João Lourenço e da PGR no combate à corrupção, basta que os contratos tenham sido assinados por alguém competente para o roubo ter validade, independentemente da intenção dolosa de ambas as partes.

Como questiona a deputada Mihaela Webba, de que forma é que algo pode ser ao mesmo tempo altamente lesivo para o Estado e lícito?

Testas-de-ferro

O tempo dos testas-de-ferro está a chegar ao fim. A comunidade jurídica internacional começou a adoptar uma série de legislação inovadora, baseada no conceito de “beneficiário efectivo”, que permite a desconstrução destes esquemas jurídicos e a responsabilização de quem detém realmente o domínio da sociedade. Rui Verde, o analista jurídico do Maka Angola, lembra que a Convenção contra a Corrupção das Nações Unidas, a que Angola aderiu em 2006, já contemplava tal ideia nos seus artigos. Nota também que a Lei sobre Branqueamento de Capitais (Lei n.º 34/11, de 12 de Dezembro) já aflora a figura do “beneficiário efectivo”. Em resumo, já não é possível esconder-se atrás da secretária ou do amigo, como acontece neste caso. Basta as autoridades judiciais quererem accionar os mecanismos legais adequados para chegarem aos responsáveis efectivos dos negócios.

Os crimes descritos nesta história não são originais. Correspondem ao catálogo que temos vindo a acompanhar nas actuais investigações. Desviar dinheiro do Estado quando se trabalha para ele configura o crime de peculato. Se não se trabalha para o Estado mas se consegue desviar o dinheiro na mesma, pratica-se o crime de burla. Como estão várias pessoas associadas, temos o crime de associação de malfeitores. E se o dinheiro desviado tiver sido reintroduzido nos circuitos financeiros, temos o crime de branqueamento de capitais.

As pessoas envolvidas nestes factos, dependendo do seu grau de culpa, terão praticados pelo menos quatro crimes: peculato ou burla, associação de malfeitores e branqueamento de capitais.

Prosseguimos com a nossa investigação, até à exposição integral dos beneficiários últimos deste grande golpe de 152 milhões de dólares com uma assinatura falsa!

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