A Dupla Fala Angolana

A minha avó está doente, e eu tenho de ir a Viana, onde ela mora com a minha tia, levar-lhe um remédio. O meu primo, tão generoso, dá-me uma boleia. Temos de aguentar o engarrafamento numa estrada cheia de buracos, entre a desordem total. Muito stress.

Na Rádio Nacional de Angola (RNA), passa mais um editorial oficial sobre a forma como a vida dos angolanos tem melhorado: estão a construir-se mais estradas, mais escolas, mais hospitais de referência. O mundo está cheio de inveja, cobiçando os enormes progressos do nosso país. 

Será que sou o único angolano que se habituou a aceitar os dois mundos da nossa realidade? Eu aceito esta dupla fala – faz parte da nossa existência. Há sempre o mundo da retórica, dos que mandam e tentam moldar as opiniões. Neste mundo, as palavras não correspondem necessariamente ao que acontece no terreno.

Na época do partido único, os órgãos de comunicação social operavam segundo a ideia de que a sua função era principalmente agitar e organizar. A objectividade e o contraditório não eram valorizados. Será que alguma vez conseguiremos livrar-nos deste hábito? Como cães de Pavlov, alguns de nós ficaram de tal forma condicionados, que ao ouvirmos o sino das autoridades, caímos na dupla fala angolana. 

Chegados a Viana, o carro não podia avançar até à porta da casa da tia, porque há poços por todo o lado. No ar, o cheiro da kambuenha, do funje, do feijão com dende. O sussurro de um fofa ndó aqui e acolá, alimentando as televisões ligadas também num canal onde, no seu sotaque refinadíssimo, mais um doutor discorre sobre as maravilhas deste nosso belo país. O sistema de saneamento no bairro da minha tia é quase inexistente. De manhã, os miúdos do bairro brincam nos poços, verdadeiros repositórios de doenças. De resto, em casa da minha tia não há luz há meses, e a água compra-se no senhor do canto, onde está também o enfermeiro com o posto médico. 

A avó levanta-se quando me vê. Mais uma vez, confundiu-me com o meu falecido pai. A tia tem um fofa ndó [gerador precário] que dá luz para o quarto da avó. O tio, irmão mais velho da minha mãe, agradece o remédio que eu trouxe e pede desculpas por ser tão difícil chegar aqui a casa depois das chuvas. Este meu tio acrescenta que, quando se aproxima uma campanha eleitoral ou quando há a visita de uma figura governamental eminente, faz- se um esforço para melhorar o bairro. Envergonhado, o meu tio conta que uma vez apareceu um jornalista fazendo perguntas sobre a vida no bairro. Automaticamente, pôs-se a falar da forma como se fala para uma rádio: que tudo estava muito bem; que o esforço do governo era muito bem-vindo. Só quando o jornalista desligou o microfone é que se falou da falta de água e da insegurança à noite, por causa do número cada vez mais elevado de assaltantes. Aqui está mais um da dupla fala angolana.

Esta dupla fala é uma distorção da realidade. Senão vejamos: mulheres indefesas, mães de prisioneiros políticos, vão para a rua manifestar-se contra o que consideram um encarceramento altamente injusto dos seus filhos. A polícia, armada até aos dentes, solta os cães contra elas; algumas são espancadas. Os responsáveis governamentais ignoram estes factos, e insistem que não se está a violar os direitos humanos de ninguém. 

Outro exemplo da distorção da dupla fala: o ministro do Interior dá uma entrevista em que diz que foram encontradas muitas armas no Monte Sumi, numa base da UNITA. Ora: nem uma pistola foi apresentada. 

Gene Sharp é uma autoridade mundial no respeitante aos pressupostos teóricos da resistência não violenta. É referido há anos como candidato ao Prémio Nobel da Paz. Todavia, na dupla fala dos nossos governantes, Gene Sharp passa de repente a ser uma figura perigosa, e os seus livros passam a ser considerados manuais de subversão. Para eles, o facto de as palavras de Sharp corresponderem à realidade no terreno não tem qualquer importância. 

A minha avó vai conversando comigo, recorda figuras da sua aldeia, gente que lhe inspirava enorme admiração e respeito. A minha avó, cujo domínio da língua portuguesa é limitado, não tem de se confrontar com este nosso mundo da dupla fala. 

 

Volto para o carro. Na rádio,a retórica de sempre: exaltações, exageros. A dupla fala!

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