A Separação de Poderes em Angola

A propósito da declaração do presidente da República João Lourenço sobre a existência ou não de negociações com Isabel dos Santos, muitos afiançaram que, caso se confirmassem tais negociações, isso violava o princípio da separação de poderes em Angola. Este conceito é daqueles que geram demasiadas confusões espúrias, devendo ser entendido de modo ágil.

As várias interpretações da separação de poderes

A separação de poderes como princípio constitucional não é absoluta, nem pode ser interpretada como mecanismo de criação de compartimentos estanques entre os poderes. Um dos piores exemplos da aplicação de um conceito errado de separação de poderes foi o famoso acórdão n.º 313/2013, prolatado pelo Tribunal Constitucional, que definiu uma figura a que chamou “separação de poderes por coordenação”, querendo com isto dizer que o equilíbrio constitucional dos poderes era de tal modo afinado que nenhum deles poderia sair dos estritos limites estabelecidos pela letra da lei. Na verdade, esta interpretação acabou, em termos fácticos, por conceder ao presidente da República um papel exagerado na arquitectura constitucional, relegando à Assembleia Nacional um papel tímido na sua função de fiscalização do poder executivo.

Se esta interpretação constitucional da separação de poderes alimentou aquilo a que chamamos a presidência imperial em Angola, com os resultados nefastos conhecidos no tempo de José Eduardo dos Santos, não foi, contudo, o único caso de interpretação perigosa da separação de poderes. Em França, sobretudo durante o século XIX, os doutrinadores adoptaram uma versão também estrita da separação de poderes, proibindo que cada um dos poderes se imiscuísse nas actividades dos outros. Isto teve como consequência prática que os actos da administração pública não pudessem ser sindicados pelos Tribunais. No fundo, o Executivo poderia fazer o que quisesse em termos administrativos, e os cidadãos não tinham defesa, pois não podiam recorrer aos tribunais. A justificação era que o poder judicial não podia interferir com o poder executivo. Quem perdeu defesas foram os cidadãos.

Temos aqui duas interpretações rígidas do princípio da separação de poderes – ambas com consequências desastrosas. A interpretação angolana impediu a Assembleia Nacional de controlar o presidente da República e os actos do seu Executivo. A interpretação francesa impediu que os tribunais franceses defendessem os cidadãos face aos abusos da administração. Em França, esta situação já mudou bastante, especialmente a partir da Constituição da V República, que legitimou De Gaulle.

Em Angola, o acórdão do Tribunal Constitucional que impede a fiscalização do Executivo pela Assembleia Nacional ainda é lei, embora possa facilmente ser alterado. Basta aprovar um novo Regimento da Assembleia Nacional, com a possibilidade de fiscalização do Executivo, e submetê-lo ao Tribunal Constitucional, que poderá declarar a sua constitucionalidade, à luz de uma interpretação mais actual da Constituição.

A separação de poderes em Angola

Onde é que tudo isto deixa a intervenção de João Lourenço sobre Isabel dos Santos? Adianta-se já a resposta: no pleno cumprimento das suas funções constitucionais presidenciais.

A separação de poderes, tal como está prescrita na Constituição angolana (CRA), não se assume como um conceito rígido, criador de compartimentos estanques. Obviamente, cada poder tem as suas funções e atribuições próprias. Contudo, cada um dos poderes está interdependente, querendo isto dizer que interage através daquilo que se chama sistema de “checks and balances” (controlos e equilíbrios). Dispõe o artigo 2.º, n.º 1 da Constituição que “a República de Angola é um Estado Democrático de Direito que tem como fundamentos (…) a separação de poderes e interdependência de funções”. Adianta o artigo 105.º, n.º 3 que “os órgãos de soberania devem respeitar a separação e interdependência de funções estabelecidas na Constituição”. E o artigo 236.º j) coloca a separação e interdependência dos órgãos de soberania como limite material à revisão da Constituição. Portanto, na dinâmica das relações entre os poderes, existe uma separação que exige colaboração de acordo com vários mecanismos estabelecidos na Constituição e na Lei.

É neste sentido que a figura do presidente da República assume especial destaque normativo, pois ele não é apenas o titular do poder executivo, mas também o chefe de Estado (artigo 108.º, n.º 1 da CRA). E, como chefe de Estado, é alcandorado ao papel que a doutrina constitucionalista novecentista representada por Benjamim Constant chamava de poder moderador. Um poder que equilibra os outros e actua como facilitador, como “ponte”, entre as variadas tensões político-legais. Esse papel também é atribuído ao presidente da República de Angola. Aliás, basta ler o elenco de poderes que lhe é atribuído enquanto chefe de Estado para perceber a amplitude do poder moderador. Como se compreende a partir da leitura do artigo 119.º da CRA, temos um presidente a marcar eleições, a designar membros do poder judicial, a indultar e comutar penas, a mandar verificar a constitucionalidade dos actos legais do poder legislativo, etc. Não se trata, consequentemente, de um mero responsável pelo poder executivo, situando-se num patamar superior de garantia da unidade do país, zelando pelo bom funcionamento das instituições. Acontece, contudo, que a atipicidade proclamada pelo legislador constitucional angolano adulterou o conceito de Constant, pensado para o papel do rei numa monarquia constitucional emergente, e criou um poder moderador bonapartista, em que facticamente o presidente da República colocou o centro do poder.

É isto que resulta da CRA: uma separação de poderes mitigada e com um elemento moderador no topo dotado de poderes imperiais, o presidente da República. Podemos discordar desta arquitectura constitucional e querer revê-la, mas devemos clarificar o que, neste momento, está escrito e determinado na Constituição.

A isto acresce que, no caso concreto, aquele que diz respeito às negociações com Isabel dos Santos, a lei adiciona mais um elemento interessante no Estatuto do Ministério Público. Estabelece o artigo 8.º, n.º 3 da Lei n.º 22/12, de 14 de Agosto, que “o Procurador-Geral da República recebe instruções directas do Presidente da República, no âmbito da representação do Estado pela Procuradoria-Geral da República”. Mais uma vez, até poderemos contestar esta solução legal, mas é o que está expressa e claramente determinado, para além de qualquer dúvida, na lei. Torna-se assim claro que, no caso de Isabel dos Santos, é mesmo competência directa do presidente da República dar instruções ao procurador-geral da República.

A questão da revisão constitucional

Esta análise das disposições constitucionais e legais sobre a separação de poderes e o papel do presidente da República em Angola leva-nos a duas conclusões, quiçá contraditórias. Por um lado, é claro que João Lourenço actuou dentro dos seus poderes constitucionais e legais, ao afastar a possibilidade de negociações com Isabel dos Santos. Por outro lado, a presente Constituição angolana enferma de demasiadas distorções conceptuais para poder continuar como está, num processo de democratização que se acredita estar em curso.

Nessa medida, haverá que lançar o desafio sério de proceder a uma revisão constitucional que afaste as presentes tentações autoritárias existentes no texto fundamental.

Essa revisão deverá confrontar dois temas essenciais: o controlo e equilíbrio dos poderes presidenciais, por um lado, e a eleição separada da Assembleia e do presidente de República, por outro. No caso dos poderes presidenciais, a questão não estará tanto na sua diminuição, embora algumas precisões sejam necessárias, quanto na sua sujeição ao crivo dos outros poderes. Já na questão da eleição, torna-se óbvio que para um presidente da República ter legitimidade popular real deve resultar de uma escolha inequívoca do povo, e não de um encobrimento obscuro numa lista partidária. José Eduardo dos Santos tinha medo do povo, e não precisava do povo para enriquecer. Tal desvinculação entre presidente e povo não pode voltar a acontecer: deve existir uma ligação directa.

Defendemos que esta revisão constitucional se deve enquadrar num movimento amplo de reformas, que designamos como Reformas dos Três Degraus. Em primeiro lugar, combater a corrupção, depois, libertar a economia e fazer crescer o país, e, como ápice, proceder à reforma das instituições, em que predomina a revisão constitucional e do Estado. Desenvolveremos estes temas em artigos autónomos ao longo de várias publicações.

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