Campanha de Intolerância Política contra Rui Ferreira

Nos últimos dias, as redes sociais têm demonstrado o seu crescente poder enquanto veículos centrais de informação, contra-informação e desinformação em Angola. Com a mudança de presidente, a liberdade de expressão em Angola tem conquistado um espaço maior.

Vem esta reflexão a propósito da polémica em torno do presidente do Tribunal Supremo, Rui Ferreira. Tudo começou com uma matéria no Facebook, assinada por Ramiro Aleixo. Este denunciava uma suposta chamada de atenção a Rui Ferreira, na reunião do Conselho de Segurança Nacional, respeitante à alegada tentativa do Tribunal Supremo de interceder pela libertação de José Filomeno dos Santos e de Jean-Claude Bastos de Morais. O filho de José Eduardo dos Santos e o seu amigo vigarista são acusados de vários crimes, incluindo associação criminosa, e o foco é o desvio de biliões de dólares do Fundo Soberano: o dinheiro terá sido encaminhado para os investimentos privados de Jean-Claude Bastos de Morais.

O Tribunal Supremo já desmentiu que o assunto tenha sido levantado na reunião do Conselho Nacional de Segurança. Fê-lo por meio de uma demonstração da união entre todos os seus 19 juízes, que solidariamente assinaram o desmentido.

No entanto, as críticas ao presidente do Tribunal Supremo, acusado de ser o arquitecto de uma “conspiração” para soltar Zenú e Jean-Claude Bastos de Morais, transformaram-se numa feroz e perigosa campanha contra a sua pessoa.

A liberdade de expressão deve, a todo o custo, ser protegida, assim como a independência do poder judiciário. Não há democracia sem pensamento livre, e não há democracia sem juízes independentes.

O dever do civismo obriga-nos por isso a intervir, no sentido de garantir a elevação do debate, dos protestos e do exercício da cidadania a um patamar superior.

Rui Ferreira foi advogado pessoal de José Eduardo dos Santos. Representou-o no famoso caso “Batom da Ditadura”, contra o autor deste texto. Também foi assessor para os assuntos jurídicos do então chefe de Estado e um dos seus mais capazes obreiros, a par de Carlos Feijó, na justificação legalista dos actos e desmandos do ditador. Rui Ferreira foi depois presidente do Tribunal Constitucional, durante nove anos. Aqui, o venerando juiz também deve ser lembrado pelo acórdão que retirou à Assembleia Nacional o poder de fiscalização dos actos do governo, bem como da certificação das maracutaias eleitorais.

A urgência do Tribunal Supremo

Passemos agora aos factos a que o Maka Angola teve acesso. A 3 de Outubro, o juiz conselheiro, presidente da Câmara dos Crimes Comuns, Joel Leonardo, requisitou à Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal (DNIAP), o Processo n.º 22/18-DNIAP, com carácter “muito urgente”.

Na sua requisição, com o n.º 030/300/CC/TS/2018, o juiz Joel Leonardo escreveu: “Estando em curso, nesta instância judicial, os autos de impugnação judicial da medida de coacção, registados sob o n.º 04/18 e 05/18, em que figuram como impugnantes José Filomeno de Sousa Santos e Jean-Claude de Morais Bastos, afectos ao processo nº 22/18-DNIAP.”

Adiante, o juiz Joel Leonardo refere que: “Considerando os fundamentos invocados pelo M.º P.º para a aplicação agora da medida de coacção – prisão preventiva – entendemos imprescindível uma melhor ponderação e consulta dos autos.”

Com estes argumentos, o juiz solicitou “com a máxima urgência” o referido processo.

Joel Leonardo, juiz conselheiro, presidente da Câmara dos Crimes Comuns

O que permanece incompreensível são as razões para solicitar a integralidade de um processo original. Normal seria pedir uma certidão de elementos concretos que suscitassem dúvidas. A verdade é que pedir o processo inteiro implica pará-lo, tirá-lo de circulação…

Este pedido desencadeou outros actos tendentes à libertação urgente de Zenú e de Jean-Claude Bastos de Morais, e toda a confusão subsequente.

O desmentido dos venerandos

Não adianta sequer, nesta altura, comentar o desmentido do Tribunal Supremo. O que realmente se tenha passado à margem do encontro do Conselho de Segurança Nacional, onde o caso de Zenú e do seu companheiro vigarista foi aflorado, as imprecisões e os exercícios de semântica aplicados ao debate por cada parte antagonista tornaram-se irrelevantes.

Mais vale sublinhar os últimos dois pontos do comunicado solidário assinado pelos 19 juízes, a 8 de Outubro.

O Supremo afirma que “não se deixará condicionar ou limitar por qualquer tipo de pressão que ponha em causa a independência dos juízes”.

Na mesma linha o Supremo “exorta todos os juízes, de Cabinda ao Cunene, a continuarem a exercer a sua actividade, incluindo a referente aos processos de combate à corrupção, com serenidade, cumprimento rigoroso da lei, objectividade e respeito da dignidade e presunção de inocência dos arguidos”.

A falácia e a hipocrisia dos 19

É nestes dois pontos que reside a falácia e a hipocrisia dos 19 venerandos juízes do Tribunal Supremo. É nestes dois pontos que, efectivamente, a sociedade civil deve, com vigor e civismo, alicerçar a sua exigência de justiça e, acima de tudo, de respeito pelos direitos humanos. Servindo-nos destes dois tão nobres compromissos, podemos referir casos concretos em que o Tribunal Supremo não se honrou a si mesmo.

Relembremos o caso dos pastores da Igreja Adventista do Sétimo Dia, já reportados várias vezes (ver aqui, aqui e aqui). Neste caso, as confissões foram extraídas sob tortura. Um dos torturados, João Dala, morreu em consequência dos maus-tratos infligidos. Foi assassinado. E, curiosamente, ninguém se preocupou com os direitos humanos destas pessoas – será porque não são importantes nem têm fundos incomensuráveis nas suas contas bancárias e na sua vida-fantasma?

Se o Tribunal Supremo está realmente interessado em defender os direitos humanos, tem de prestar verdadeira atenção a estes casos de abuso de poder. Um dos pastores estrangeiros, Burns Sibanda, sofre de cancro e continua impedido de viajar para receber o tratamento de que necessita. Este caso está no Tribunal Supremo há muito tempo, e os venerandos juízes não tugem nem mugem. Burns Sibanda, sabemos bem, não pertence à família Dos Santos.

Existem muitos mais exemplos de tortura e excesso de prisão preventiva, ou seja, de violações dos direitos humanos, que deveriam preocupar o Tribunal Supremo, e que esperamos que doravante mereçam a sua atenção.

A intolerância política

Passemos então à anunciada manifestação contra o presidente do Tribunal Supremo, Rui Ferreira, marcada para 13 de Outubro, e que exigirá a sua demissão por conta do caso Zenú & Vigarista. Os manifestantes anónimos pretendem marchar desde a Universidade Agostinho Neto até à casa do juiz.

O tipo de campanha montada nas redes sociais contra Rui Ferreira em nada contribui para a democracia que pretendemos construir, assumindo-se, pelo contrário, como um acto de intolerância política. Sempre denunciámos os actos de intolerância política.

É óbvio que, mesmo tendo o juiz Rui Ferreira sido eleito por concurso público, os cidadãos têm o direito de protestar contra actos, decisões ou omissões de sua responsabilidade. Podem e devem pronunciar-se, protestar, exigir esclarecimentos, etc. Não podem nem devem organizar iniciativas de justiça popular, que envolvem a aproximação à residência particular do juiz e sua família.

Devemos defender com unhas e dentes a independência dos magistrados e usar a via judicial e as redes sociais para denunciar, com verdade e seriedade, os que violam a lei ou a agora tão cara independência dos magistrados.

“A conspiração dos juízes”, matéria que publicámos sobre o mesmo assunto, é apenas um alerta para os perigos desta mesma magistratura, que tão bem serviu o ex-ditador José Eduardo dos Santos e agora aparece imaculada, com as vestes da independência. Mas quem fala dos magistrados fala também do presidente e de quase todos os dirigentes actuais que também serviram, com subserviência, o mesmo ditador. É o que temos. Todavia, temos de saber caminhar unidos na vontade de construir um país diferente, mudando efectivamente as mentalidades.

Ninguém está limpo, mas ninguém é obrigado a permanecer sujo. Quem fez mal ontem não é obrigado a prosseguir o caminho do mal.

Dito isto, a campanha política contra Rui Ferreira, tal como está a ser montada, fere os valores democráticos que pretendemos construir. Podemos e devemos investigar Rui Ferreira e alguns dos seus negócios, como já fizemos aqui, sobre o Dom Q e a sua fazenda no Kwanza-Sul (ver aqui e aqui), mas nunca com marchas rumo a residências particulares nem quaisquer outros actos de intolerância política.

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