Magistrados Perseguem Juiz

Um juiz do Tribunal Supremo aparece nas redes sociais e é suspenso pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial. Um outro juiz do mesmo tribunal surripia secretamente um processo de corrupção atribuído a um colega, inconstitucionalmente iliba o general acusado e é absolutamente protegido pelo mesmo Conselho. O abuso de poder e o total desrespeito pelas normas elementares do direito tornaram-se na maldição e na loucura da justiça em Angola.

Os factos

No primeiro dia deste mês, o secretário executivo do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ), Manuel Victor Assuílo, notificou o juiz conselheiro do Tribunal Supremo (TS) Agostinho Santos (na foto) de uma deliberação desse Conselho.

Segundo a deliberação, em 26 de Outubro, a Comissão Permanente do CSMJ decidira instaurar um processo disciplinar contra Agostinho Santos devido a uma entrevista e uma conferência de imprensa que concedera, em Maio de 2022, ao canal Camunda News, e bem assim por causa das suas aparições nas redes sociais. Alegadamente, a conduta do juiz conselheiro teria violado o dever de urbanidade e discrição. Curiosamente, a notificação entregue a Agostinho Santos não menciona nenhuma medida de suspensão preventiva. Numa outra nota, o CSMJ declara que o juiz se encontra suspenso, mas não apresenta nenhuns argumentos para fundamentar essa decisão.

Esta suspensão não tem qualquer sentido e é, em si mesma, ilegal. De acordo com a lei, a suspensão só se justificaria se existisse um perigo. Ora, que perigo poderá existir passados seis meses dos factos? Absolutamente nenhum. É que não estamos a falar de factos em curso, onde o juiz conselheiro pudesse ter intervenção, mas sim de supostos actos passados e concluídos.

Foi ainda afixado à entrada do gabinete de Agostinho Santos um papel manuscrito proibindo que aí entrassem o juiz e a sua secretária. Este papel não tem, obviamente, nenhum valor legal ou oficial e não deve ser obedecido, pelo menos não pela secretária, que não está a ser processada por nada. Estamos perante enorme uma afronta à dignidade do cargo de juiz conselheiro, com procedimentos ilícitos e amadores – tudo demasiado mau para se passar num Tribunal Supremo.

Por outro lado, ficou designado como instrutor do processo o vogal do CSMJ Carlos Cavuquila, que, conforme pudemos apurar, não tem competência para ser instrutor do processo do Agostinho Santos. Segundo um jurista que prefere não ser identificado, “o Estatuto dos Magistrados (Lei 7/94 de 29 de Abril) remete para o Regime Disciplinar dos Funcionários Públicos, segundo o qual o instrutor do processo disciplinar tem de ser de categoria igual ou superior ao do arguido”. Ora, Carlos Cavuquila é um político do MPLA, ex-administrador do município de Cacuaco, que foi nomeado pelo presidente da República (PR) para vogal do CSMJ por ter formação em Direito (a Constituição permite ao PR designar três juristas para o referido órgão). Sendo vogal e não juiz conselheiro, não está apto a instruir o processo disciplinar. Temos, portanto, um político a liderar um processo disciplinar contra um juiz do Tribunal Supremo. Fantástico!  “O CSMJ está a exagerar”, remata o referido jurista, “até questões elementares de lógica são atropeladas. Pergunto-me se essas pessoas estudaram mesmo Direito, porque parecem não entender nada de leis.”

Facilmente se entende que nenhuma das acusações contra Agostinho Santos é consubstanciada pelos factos. O CSMJ acusa o juiz de ter dado entrevistas e uma conferência de imprensa, bem como de ter aparecido nas redes sociais. Para o CSMJ, as aparições públicas do juiz Agostinho Santos violam os referidos deveres de urbanidade e discrição. O CSMJ não menciona quais as expressões, comportamentos, acções ou omissões que violam estes deveres. O mero facto de aparecer nas redes sociais não é um acto ilegal ou de falta de urbanidade. A ausência de conteúdo específico na acusação contra o referido juiz conselheiro torna nula e sem nenhum efeito a notificação que lhe foi entregue.

Reforçando ainda mais a irrelevância desta notificação temos o artigo 90.º, n.º 2 do Estatuto dos Magistrados Judiciais, que determina a caducidade do procedimento disciplinar no prazo de 60 dias a contar do conhecimento da infracção. Trata-se de factos públicos e notórios (entrevista e conferência de imprensa), ocorridos há mais de 60 dias – portanto, o procedimento disciplinar caducou em Julho de 2022. Trata-se de uma completa desconsideração das normas legais em vigor por parte de um dos órgãos mais importantes para o ordenamento jurídico nacional.

A verdade é que o juiz conselheiro Agostinho Santos se tornou uma figura incómoda para determinados sectores da magistratura judicial, sobretudo para o presidente do Tribunal Supremo, o brigadeiro Joel Leonardo, que tem vindo a transformar o poder judicial numa terrível base de operações especiais para o poder político. Isso explicará que tenham vindo a ser instaurados processos disciplinares sem qualquer respeito pelas normas jurídicas, que o bom senso declararia impossíveis de conceber.

Ao mesmo tempo que o CSMJ se presta a desenvolver processos infundados contra alguns juízes, também se dedica a proteger os piores. Há dois casos paradigmáticos que revelam que o TS e CSMJ têm sido despudoradamente instrumentalizados para outros fins. São os casos dos juízes João António Francisco e Daniel Modesto Geraldes.

O rapto inexistente

Em primeiro lugar, temos o caso do mal-afamado juiz João António Francisco, que condenou pastores da Igreja Adventista do Sétimo Dia por um rapto que nunca aconteceu. Em 2019, o Tribunal Supremo absolveu-os por ausência de provas e apresentou uma participação junto do CSMJ, acusando o juiz de conduta malévola e suspeita de corrupção.

A 8 de Agosto de 2019, porém, o juiz João António Francisco foi admitido a juiz desembargador do Tribunal de Relação de Luanda. No ano seguinte, passou a exercer o cargo de secretário executivo do CSMJ, precisamente o órgão encarregado de o investigar. Curiosamente, havia sido o presidente do TS e cumulativamente do CSMJ, o brigadeiro Joel Leonardo, quem absolvera os pastores e solicitara a abertura do processo disciplinar contra o juiz João António Francisco, que entretanto se tornou um seu peão e director de gabinete no CSMJ.  

Sobre a participação disciplinar contra o juiz João António Francisco – sobre a qual o fundador do Maka Angola também prestou depoimentos como declarante, a pedido do CSMJ – não se ouviu um pio público.

“Furto” de processo alheio

Em Maio passado, o juiz conselheiro do TS Daniel Modesto Geraldes anulou o despacho de pronúncia contra o general Higino Carneiro, que era acusado de vários crimes de corrupção, incluindo peculato, nepotismo, tráfico de influência, associação criminosa e branqueamento de capitais.

Conforme investigação do Maka Angola, o juiz Modesto, de forma inédita, terá surripiado, sob a orientação do juiz presidente Joel Leonardo, o processo que já havia tido decisão em conferência pela Câmara Criminal em sede de recurso. Na verdade, o referido processo, quando foi introduzido em juízo pelo Ministério Público, tinha sido sorteado e atribuído ao juiz Daniel Modesto, tendo este magistrado proferido um despacho de pronúncia inicial que confirmava que os factos arrolados pelo Ministério Público constituíam efectivamente crimes e deveriam ser levados a julgamento. Naturalmente, exercendo os direitos da defesa, o advogado do arguido interpôs um recurso sobre a pronúncia proferida pelo juiz Daniel Modesto. Nessa sequência, foi sorteado novo juiz para preparar o acórdão (relator). Coube essa função ao juiz Aurélio Simba, que preparou um projecto de acórdão e o submeteu à conferência da Câmara Criminal. Da discussão resultou, por unanimidade, a negação do recurso interposto: ou seja, todos os juízes decidiram manter a pronúncia recorrida, o que fez caso julgado. Significa isto que foi confirmado em recurso que Higino Carneiro deveria ser levado a julgamento.

Logo, o passo seguinte seria levar o arguido a julgamento para efeito de condenação ou absolvição. E é aqui que, alegadamente, entram em cena os dois juízes conselheiros Joel Leonardo e Daniel Modesto. Ao arrepio da lei aplicável, o primeiro terá orientado o segundo para elaborar um “despacho de despronúncia” sobre a pronúncia que ele próprio havia inicialmente feito e que tinha sido confirmada pelos demais juízes conselheiros da Câmara Criminal. Segundo o próprio juiz Modesto, terá sido o presidente Joel Leonardo quem o convenceu a praticar aquele acto, por suposta pressão política (orientação superior), pedindo-lhe ainda sigilo absoluto, ou seja, que não partilhasse tal acto com os demais colegas.

Acontece, porém, que o “despacho de despronúncia” emitido pelo juiz Modesto não tem nenhum valor jurídico e, por isso mesmo, é inexistente. O juiz decidiu sobre um caso onde já tinha esgotado a sua competência jurisdicional e para o qual já não tinha competência. Tal acto, em linguagem terra-a-terra, poderia ser qualificado como “furto” de processo alheio. Numa das reuniões recentes do plenário do Tribunal Supremo, segundo fontes do Maka Angola, Daniel Modesto Geraldes defendeu-se afirmando que tinha agido a mando do presidente do Tribunal Supremo.

Como nota um conhecido professor de Direito, “o novo Código do Processo Penal não prevê, não admite mais o despacho de despronúncia na fase judicial em que se encontrava o processo. Não existe essa figura jurídica usada pelo juiz Daniel Modesto Geraldes”.

“Depois da pronúncia só há julgamento. O arguido pode sempre provar a sua inocência e ser absolvido durante o julgamento”, argumenta o académico. E acrescenta que, mesmo na batota, o general ficaria mais bem protegido se o arguido fosse absolvido em julgamento, porque a forma como foi “despronunciado” deixa o seu processo em aberto, dado que “a decisão é nula e sem efeito”. Isto é, a qualquer momento Higino Carneiro pode voltar a ser acusado.

Este caso é uma das razões óbvias da perseguição a Agostinho Santos, que, a par dos demais juízes, sobretudo da Câmara do Crime daquele Tribunal, adoptou um posicionamento firme, exigindo o agendamento do caso Modesto/Higino Carneiro para discussão no Tribunal Supremo.

Mas a perseguição ao juiz Agostinho Santos é sintoma de algo mais profundo e grave por detrás da disfuncionalidade do poder judicial.

O tribunal como arma de combate

Durante o mandato de José Eduardo dos Santos (JES), o poder judicial era simbólico. Dormia. A existência dos tribunais era um esquecimento, a não ser para as condenações de pilha-galinhas, pobres e excluídos. A preceito, no pós-guerra de JES, os tribunais ganharam relevância apenas para a condenação de activistas.

Com João Lourenço, o poder judicial ganhou uma importância inusitada, tornando-se o ponta-de-lança do combate à corrupção. Infelizmente, cada vez mais se assiste à sua transformação em arma de combate nas purgas internas do poder. Ao nível do Tribunal Supremo, a justiça parece agora uma espécie de substituta dos antigos generais oligarcas. Estes tinham o poder das armas e a “legitimidade” conferida pelo comando da guerra. A justiça actual tem o poder de mandar para a prisão e a “legitimidade” da luta contra a corrupção. Parece haver menos interferência política na justiça, mas mais interferência do poder judicial na política para obtenção de poderes paralelos.

A existência de uma justiça tão poderosa nas mãos de um punhado de gente que não cumpre a sua função – julgar com imparcialidade, celeridade e equilíbrio – deve ser motivo da maior preocupação.

O Tribunal Supremo falhou nos seus deveres de julgar com rapidez e equidade os casos de corrupção. Enredou-se numa teia inexplicável de atrasos e arbitrariedades.

Não se vislumbra um verdadeiro esforço por colocar a justiça a funcionar e por credibilizar o seu funcionamento perante a população.

O caso legalmente despropositado contra Agostinho Santos é um sintoma desta justiça disfuncional, perdida num labirinto de contradições e incapaz de viver à altura do foco de luz que lhe foi colocado.  

Mais preocupante ainda é o silêncio cúmplice da generalidade dos magistrados, que não assumem uma posição colectiva e pública de defesa do seu juramento à nação, de respeito pelas leis e pelo Estado de direito. Em vez disso, o que se vê – e a imagem é fundamental para a justiça – são deliberações sobre casas milionárias a atribuir aos juízes e intrigas entre si. “Trata-se da salvação individual. Os juízes estão mais preocupados com a distribuição de casas do que com a defesa do interesse comum. É fácil mantê-los reféns e divididos com a promessa de benefícios extra-orçamentais e promoções por compadrio ou para servirem de peões”, lamenta um juiz reformado. Neste aspecto, os juízes espelham a mentalidade mesquinha de certos sectores da sociedade angolana, sempre preocupados em garantir regalias para si próprios e indiferentes ao bem-estar colectivo e ao bom funcionamento das instituições.

O supremo magistrado da nação, o presidente da República, tem descurado o seu dever de garantir, precisamente, o bom funcionamento das instituições. O TS e o CSMJ, ambos sob comando do brigadeiro Joel Leonardo, parecem ter adoptado a via da loucura. O sistema judicial clama por reformas urgentes.

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