O Mandado de Captura contra Isabel dos Santos

Tem sido notícia, sempre envolta em alguma bruma – o que acaba por lhe retirar efeito público –, a emissão de um mandado “internacional” de captura contra Isabel dos Santos.

É bom começar por esclarecer o que isto é, uma vez que a Interpol não emite mandados internacionais deste tipo. Em rigor, o que há é um mandado de captura nacional emitido pela Procuradoria-Geral de Angola (PGR) no âmbito do processo n.º 48/2019­DNIAP/PGR a 3 de Novembro de 2022. O que acontece é que este mandado é transmitido à Interpol sob a forma de uma red notice (notificação vermelha).

Alertas vermelhos na Interpol

A red notice é o pedido de um Estado (neste caso, Angola) a todos os países membros da Interpol para localizar e prender provisoriamente uma pessoa (Isabel dos Santos), com vista a extraditá-la, entregá-la ou acção legal semelhante. A red notice não é um mandado de prisão internacional, mas sim uma solicitação de um Estado aos outros, distribuída através da Interpol.

Depois de enviada esta notificação a todo o mundo, dependerá de cada país membro da Interpol decidir, de acordo com as suas próprias leis, se vai ou não prender a pessoa e entregá-la. Isto significa que a prisão não é automática, antes depende da legislação interna e dos tratados internacionais de cada país.

O que cada país faz com a red notice

Analisemos dois exemplos de países onde Isabel dos Santos poderá estar e o modo de actuação que a lei de cada um prevê.

Se Isabel dos Santos se encontrar no Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, teremos em primeiro lugar de considerar, como em relação a todos os países, se existe um acordo de extradição. Na lista de acordos constante no site da Embaixada de Angola nos Emirados não consta nenhum acordo desse tipo, pelo que podemos concluir que não há acordo de extradição.

Contudo, tal não impede que os Emirados procedam a uma extradição nos termos da sua Lei Federal n.º 39 de 2006 acerca da cooperação judiciária internacional em matéria penal. De acordo com o artigo 6.º dessa lei, é admissível, sob determinadas condições, um pedido de entrega de qualquer pessoa que esteja nos Emirados Árabes Unidos às autoridades judiciais estrangeiras para fins de investigação de qualquer crime (artigos 7.º e 8.º da Lei Federal n.º 39). Noutras situações, como em casos de crimes políticos ou de estarem em causa punições desproporcionais, não será concedida a extradição (artigo 9.º).

Em resumo, para obter a extradição do Dubai para Angola é necessário seguir os procedimentos da respectiva Lei Federal; depois, a extradição poderá ou não ser concedida.

Vejamos agora o exemplo do Reino Unido. Também não se encontram referências a nenhum tratado de extradição entre o Reino Unido e Angola (https://www.gov.uk/government/publications/international-mutual-legal-assistance-agreements/mutual-legal-assistance-and-extradition-treaty-list-accessible-version).

Mesmo assim, é possível fazer um pedido de extradição ao Reino Unido nos termos da secção 194 da Lei de Extradição de 2003. As solicitações recebidas são feitas a um departamento do Ministério do Interior e a decisão é tomada pelo ministro respectivo, que pode decidir avançar com “arranjos especiais de extradição”. A decisão poderá ser contestada nos tribunais britânicos.

Poderíamos apontar outros exemplos, mas no essencial as regras são semelhantes. Não existem automatismos, tudo depende da jurisdição interna de cada país e da sensibilidade face ao caso.

A divulgação da red notice

A pedido do país membro em questão, podem ser publicados trechos da red notice, nomeadamente quando a ajuda do público possa ser necessária para localizar um indivíduo ou quando o indivíduo represente uma ameaça à segurança pública.

Portanto, efectivamente, existe uma base de dados onde podem ser publicadas as red notices, mas o facto de uma pessoa não constar dessa base de dados não significa que não tenha sido emitida uma red notice contra si, antes que o Estado requerente (Angola) não pediu essa inserção.

Morosidade e amnistias: extradição comprometida?

Como é sabido, Isabel dos Santos saiu de Luanda em Agosto de 2018 (há quatro anos) e já antes o Maka Angola tinha publicado várias e exaustivas peças sobre eventuais factos com enquadramento criminal atribuíveis a Isabel dos Santos: a 1 de Março de 2018, “Os crimes e a má gestão de Isabel dos Santos na Sonangol”; a 8 de Novembro 2017, “A insustentável situação de Isabel dos Santos na Sonangol”; a 12 de Maio de 2017, “Sonangol: A gestão insondável de Isabel dos Santos“; ainda antes, a 24 de Maio de 2016, “Mais de metade da fortuna de Isabel dos Santos pertence à Sonangol”; e a 26 de Setembro de 2016, “Galp: A promiscuidade entre Sonangol e Isabel dos Santos”.

Quer isto dizer que, entre 2016 e Março de 2018, foram publicadas matérias suficientes para levar a PGR de Angola a agir e a notificar Isabel dos Santos ainda em território nacional. A lentidão das autoridades foi inexplicável.

Neste momento, qualquer jurisdição poderá alegar que já passou tempo demais, e a PGR terá de justificar por que não emitiu o mandado mais cedo.

Admite-se que fosse muito mais fácil e expedito obter uma extradição a partir de 2018, altura em que Isabel dos Santos era alvo de grande atenção. Passado todo este tempo, após várias justificações e intervenções públicas de Isabel, algumas jurisdições poderão adoptar uma postura mais contida. Há, aliás, um precedente perturbador para as intenções do Estado angolano, que é a decisão do Tribunal Constitucional (TC) espanhol a propósito do caso Carlos Panzo. Nesta decisão de 2021, o TC de Espanha anulou a ordem de extradição de Carlos Panzo para Angola com o argumento de que não havia garantias de independência da PGR face ao poder executivo e de que a mesma PGR tinha enviado a documentação sem qualquer aval judicial.

Ora, a mesma falta de aval judicial existe neste mandado contra Isabel dos Santos, pelo que, no tribunal que tenha de decidir sobre o tema, podem colocar-se semelhantes questões às do TC espanhol. Note-se que o presente mandado de captura contra Isabel dos Santos foi emitido pela PGR e não por um juiz. Isso pode comprometer qualquer extradição.

Além destes aspectos, temos de considerar as duas Leis da Amnistia: a de 2016 e a que vai agora ser aprovada. O crime de peculato não está abrangido nesta última lei, mas tudo indica que os outros crimes indicados no mandado já estarão abrangidos, designadamente os de fraude qualificada (desde que ressarcida), participação ilegal em negócios, associação criminosa e tráfico de influência.

Portanto, atendendo ao tempo que já passou, à inexistência de um mandado judicial (o mandado é apenas da PGR) e à Lei da Amnistia que reduz substancialmente os crimes imputáveis a Isabel dos Santos, um tribunal estrangeiro poderá chegar à conclusão de que não se justifica a extradição ou de que deve fazê-lo sob condições muito apertadas. É evidente que se nota em todo este processo uma vagareza e desatenção técnica inexplicável por parte da PGR, o que pode transformar tudo numa farsa, levando ao fracasso da apregoada luta contra a corrupção, a bandeira que João Lourenço poderia deixar como legado.

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