Um General Fora-da-lei: o Caso Simba
No âmbito do processo n.º 525/2021, o Tribunal Militar da Região de Luanda tomou, a 14 de Março passado, uma decisão daquelas que alegram os que têm defendido a importância de os tribunais serem detentores de poderes próprios e independentes, assumindo funções no controlo de abusos e arbitrariedades dos poderes públicos e fácticos em Angola.
A decisão do tribunal diz respeito ao caso em que foi julgado o primeiro-sargento das Forças Armadas Angolanas (FAA), José Carlos Luís Simba. Simba vinha acusado de, no dia 2 de Dezembro de 2020, ao deparar-se com um aparato militar comandado pelo tenente-general Rui Lopes Afonso – o qual procedia à demolição de várias casas no distrito urbano do Lar Patriota, Talatona; e, entre elas, a habitação do próprio Simba –, se ter insurgido contra esta acção, que entendeu como ilegal. Simplificando: o sargento viu os seus companheiros do Exército a demolirem a sua própria residência e manifestou veementemente o seu descontentamento. Quem não o faria?
Na altura devida, reportámos este caso e referimos que não víamos fundamento legal para a actuação em força do general e das suas tropas contra uma população civil desarmada. Na verdade, uma restituição provisória de posse parece ter-se transformado numa ordem de demolição, sem que se tenha percebido porquê – houve aqui um salto jurídico incompreensível. E se, juridicamente, não se vislumbrava fundamento legal para a intervenção militar, ainda menos do ponto de vista constitucional. As FAA são um corpo de defesa da pátria e não devem ser afectas a actividades de polícia ou agir como funcionários ocasionais do tribunal. É evidente que se tratou de um recurso injustificado e despropositado.
Para tornar tudo mais complexo e fomentar a indignação e a suspeita, aparentemente a figura por detrás desta acção desproporcionada seria o deputado Dino Matross.
Certo é que o sargento Simba considerou o sucedido como uma violação gravemente danosa dos seus direitos fundamentais, e reagiu com extrema exasperação e grande descontentamento.
Face à indignação e aos protestos bastante audíveis de Simba, o general Lopes Afonso ordenou a detenção imediata do sargento. Deste modo teve início o processo judicial em que José Carlos Simba foi pronunciado pelo crime de conduta indecorosa, previsto e punível pela Lei dos Crimes Militares.
O processo seguiu a sua tramitação, até ao julgamento. Acontece que o que se apurou no julgamento foi absolutamente linear. Embora exaltado e exprimindo-se num tom de voz elevado, em momento algum o sargento foi visto ou ouvido em conduta imprópria ou desrespeitadora do general. O seu comportamento foi o expectável, tendo em conta a situação com que se deparou.
Ora, não havendo prova, o Tribunal decidiu pela absolvição, e muito bem.
Um exercício interessante será transcrevermos uma parte da fundamentação do acórdão, que demonstra que, ao contrário do que muitos querem fazer crer, começa a existir em Angola uma jurisprudência firme e convicta de defesa da legalidade e dos direitos fundamentais. Não será a ideal, mas têm vindo a surgir vários lampejos animadores. Neste caso, escrevem os juízes:
“Quem não aprende com a história está sujeito a tropeçar nos próprios erros, sendo Angola um Estado Democrático e de Direito, dispõe o art.º 6.º e n.º 2 do art.º 65, ambos da CRA, o Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade… e ninguém pode ser condenado por crime senão em virtude de lei anterior que declare como punível a acção ou omissão.
Por conta do direito natural, os seres humanos nascem livres, podendo viver integrados numa comunidade, porém sempre em respeito às limitações impostas pelo direito positivo, daí que tal direito à liberdade física encontra respaldo nas cartas magnas de todos os estados.”
Independentemente de ser algo doutrinária, esta declaração tem força e demonstra o empenho dos juízes, ou pelo menos de alguns juízes, para se fundar efectivamente um Estado de Direito em Angola. Através da recorrência destas afirmações, no âmbito de processos judiciais cujo objecto seja o dos direitos fundamentais dos cidadãos, será possível concretizar-se a intenção de construir um verdadeiro Estado de Direito no país.
Por oposição, o tenente-general Lopes Afonso comportou-se duplamente mal nesta história toda. Em primeiro lugar, por ter comandado um dispositivo militar e efectuado uma acção com as FAA de legalidade muito duvidosa. Como mencionámos, não faz qualquer sentido colocar as FAA em tarefas de demolição ordenadas (ou não, porque nem isso é claro) por um tribunal. Em segundo lugar, por ter ignorado o desespero do seu confrade militar, ao ver a sua própria casa demolida. Tudo isto deixa um sabor muito amargo na actuação de um oficial-general. Exige-se uma tomada de atitude. Se a justiça se move no sentido do Estado Democrático de Direito, o poder político deve acompanhar este movimento. Neste caso concreto, o comandante-em-chefe das Forças Armadas devia tomar uma posição, colocando-se ao lado da justiça. E esta posição só poderia levar à exoneração do tenente-general Lopes Afonso do comando da região militar de Luanda. Este seria um novo e necessário passo a dar finalmente: reclamar-se a consistência e coerência entre os processos judiciais e as decisões políticas.