BNA e BNI: Os Meandros Obscuros da Dívida de US $146 Milhões

A dívida de 146 milhões de dólares do Banco de Negócios Internacional (BNI) junto do Banco Nacional de Angola (BNA) tem sido um dos pontos críticos para o fecho de contas de 2016 e 2017 do banco central.

Recentemente, o governador do BNA, José de Lima Massano, enviou um relatório ao gabinete do presidente João Lourenço, explicando as razões que impedem o fecho de contas desta instituição no biénio referido. Segundo o semanário Expansão, Massano afirma que a falta de prestação de contas se deve a “gastos excessivos” por parte da anterior administração, a cargo de Valter Filipe.

Por sua vez, a anterior administração e o auditor externo insistiam na resolução da dívida com o BNI, para o fecho de contas. Ao Maka Angola, o presidente do Conselho de Administração do BNI, Mário Palhares, garante que a dívida já foi saldada, através da transferência de activos imobiliários para o Recredit (leia a resposta na íntegra no fim deste texto). Com a queda do mercado imobiliário, a anterior administração recusava-se a aceitar os três terrenos, na cidade de Luanda, propostos como pagamento.

Maka Angola traz agora a lume os meandros desta misteriosa dívida.

O crédito de 200 milhões de dólares concedido pelo BPN

Em 2007 e 2009, o BNI contraiu uma dívida no valor total de 200 milhões de dólares junto do Banco Português de Negócios (BPN), para a concessão de créditos à habitação social e à agricultura.

O BNA, órgão de supervisão e regulação do sistema bancário angolano, deu garantias à operação, por meio de dois depósitos de caução no valor de 200 milhões de dólares. Amadeu Maurício era o governador do BNA na altura.

De acordo com a investigação do Maka Angola, não se encontra qualquer informação sobre quais os projectos agrícolas ou de habitação social que terão sido financiados pelo BNI com recurso ao referido crédito.

Como contrapartida da garantia que o BNA dava ao BPN, o banco central angolano ficaria com o penhor hipotecário das casas.

Por altura da garantia do BNA, faziam parte da estrutura accionista do BNI os filhos de José Eduardo dos Santos: Welwitschea dos Santos “Tchizé”, com 13,34% das acções, sendo a segunda maior accionista, e o seu irmão José Eduardo Paulino dos Santos “Coréon Dú”, com 6,64%. Mário Palhares, o fundador do banco e ex-vice-governador do BNA (1991-97), detinha 45% das acções.

“O BNI, embora se declarasse agente da operação, usou os valores que recebeu do BPN para fazer aplicações destes fundos junto do Banco Privado Internacional de Cabo Verde, resgatando-os depois sem pagar a dívida ao BNA”, assegura fonte familiarizada com o dossiê.

Criado em 2006, o Banco Privado Internacional (Instituição Fiduciária Internacional), S.A., é uma offshore de alguns sócios do BNI. Ou seja, este banco fez uma aplicação do crédito junto do banco dos seus sócios em Cabo Verde.

Em 2017, ao analisar a referida operação, o Banco Nacional de Angola concluiu: “Claramente percebe-se que foi responsabilidade do BNI a aplicação destes fundos junto do BPI, bem como o resgate antecipado do mesmo. No entanto, a dívida junto do BNA persiste.”

BNA paga dívida do BNI

Depois da operação com o BNI, o BPN faliu e foi nacionalizado pelo estado português. A seguir, o governo de Passos Coelho vendeu-o ao BIC Angola, liderado por Isabel dos Santos, por 40 milhões de euros. Depois desta operação, o BPN passou a designar-se BIC (actualmente, é EuroBic).

Em 2012, passados cinco anos desde o primeiro empréstimo, o BNI apenas tinha saldado 39 milhões de dólares ao credor. Por incumprimento do período contratual assumido pelo BNI, o BPN (agora EuroBic) executou a garantia providenciada pelo BNA, que teve de liquidar o montante em falta, no valor de 161 milhões de dólares. Ou seja, a dívida foi paga ao banco da filha do então presidente José Eduardo dos Santos. O actual governador do BNA, José de Lima Massano, exercia as mesmas funções nessa altura.

BNA: de garante a credor do BNI

O BNA passou de garante a credor do BNI, que deixou de ter qualquer dívida ao banco português. O BNI comprometeu-se, segundo documentos consultados por este portal, a pagar a dívida num período de quatro anos, a contar desde Janeiro de 2013, com uma taxa de juro anual de 2,8 por cento.

Para o efeito, o BNI criou um instrumento financeiro do tipo obrigacionista – Depósito Angola+4YR 2012 –, que foi subscrito pelo BNA. A dívida do BNI tornou-se um activo do BNA.

No ano seguinte, após ter pagado apenas 15 milhões de dólares, o BNI solicitou a prorrogação do prazo de pagamento da dívida de quatro para seis anos, com uma taxa de juro de três por cento e com entrada em vigor em 2014. O BNA aceitou a proposta.

Para que o BNA não tivesse um “buraco” de 146 milhões de dólares nas suas contas, o Depósito Angola+4YR 2012 figurava como activo desta instituição.

Acto contínuo, em 2014, para evitar a inscrição de prejuízos (imparidades) nas suas contas, o BNI criou uma sociedade-veículo em Cabo Verde, para a qual transferiu a dívida ao BNA. Nessa sociedade, o BNI colocou um conjunto de imóveis (Casa Inglesa e terrenos no Kinaxixi e Morro Bento, em Luanda) “no montante de 44 milhões de dólares, equivalentes a 30 por cento do valor total da dívida, contabilizados na conta de Bens-não-de-uso-próprio”, conforme informação do BNA. Colocou também saldos a receber da empresa Mar Grandioso (promotora dos condomínios Jardim de Rosas, entre outros), “de valores futuros contratualizados pela promoção imobiliária de activos localizados em Angola, no montante de 90 milhões de dólares, contabilizados como imobilizações incorpóreas”.

Em 2015, o BNA passou a ser liderado por José Pedro de Morais, cujo filho, Ivan Leite de Morais, é o seu testa-de-ferro no BNI, detendo 5,29 por cento do capital accionista.

No ano seguinte, em 2016, o BNI requereu ao BNA, para o fecho das suas contas de 2015, “o não registo de qualquer imparidade referente à operação [a dívida de 146 milhões de dólares]”.

O BNI pedia também “a constituição de uma sociedade-veículo para onde seriam transferidos os passivos (depósitos existentes) e os activos (projectos imobiliários), o que permitiria a sua retirada do balanço do BNI, sendo esta sociedade detida por uma entidade ou entidades a indicar pelo BNA”.

Pagamento em terrenos

O BNA acedeu, e o BNI propôs então ao BNA que fizesse parte dessa sociedade offshore, criada em Cabo Verde.

A 29 de Março de 2017, através da correspondência 511/DSI/17, o BNA solicitou ao BNI a avaliação dos imóveis que este propunha como pagamento da dívida dos 146 milhões de dólares.

Trata-se dos terrenos inicialmente avaliados no montante de 44 milhões de dólares pelo próprio banco, em 2014, durante o pico do mercado imobiliário em Angola: um terreno com projecto sito na Rua Major Kanhangulo (antiga Casa Inglesa), Luanda; um terreno com plano de massas localizado na Avenida Lénine, Luanda; um terreno com projecto sito no Morro Bento, Luanda.

 

Fachada da antiga Casa Inglesa, um dos terrenos dados para a liquidação da dívida e desenvolvimento de um projecto imobiliário.

A avaliação dos terrenos ficou a cargo da Proprime Lda., a mesma empresa que fez avaliações estratosféricas dos terrenos que a Escom vendeu fraudulentamente a cinco empresas-fantasma, em 2013, por 500 milhões de dólares.

Desta feita, a Proprime avaliou os três terrenos em 179 milhões de dólares, em tempo de crise. Esse valor é 135 milhões de dólares acima – ou seja, três vezes superior – da avaliação inicial dos terrenos durante os anos loucos do mercado imobiliário em Luanda, e 33 milhões acima da dívida do BNI ao BNA.

No seu parecer, o BNA levanta questões legais sobre a solução encontrada pelo BNI: “A ser aceite, esta proposta significaria a exoneração completa da dívida por parte do devedor […].” O mesmo documento refere que o BNA ficaria “com o encargo de tornar líquido o património consubstanciado nos referidos activos”.

“Esta proposta é vantajosa apenas para o BNI, que se desoneraria totalmente da dívida, sem que o BNA tivesse garantia de reaver os fundos, embora estejam em causa activos”, afirma ainda o parecer, e continua:

“Note-se que actualmente o mercado imobiliário está com muitas dificuldades, pelo que seria muito difícil ao BNA, através da entidade indicada por si, realizar estes activos. Parece-nos que o BNI pretende pura e simplesmente endossar a responsabilidade ao BNA.”

Por essas e outras razões apresentadas, o relatório do BNA de 20 de Abril de 2017, ainda sob gestão de Valter Filipe, rejeitou a proposta do BNI.

O BNA solicitou o cumprimento do acordo assinado pelo BNI. Em resposta, o banco liderado por Mário Palhares referiu ter recebido um parecer favorável do BNA, na altura liderado por José Pedro de Morais, “à solicitação de reembolso antecipado mediante a dação de um conjunto de activos localizados em Angola e respectivos direitos, junto do BPI / Cabo Verde”.

O Departamento de Supervisão Prudencial das Instituições Financeiras (DSI) do BNA esclareceu que esta instituição não autorizava “o BNI a alterar as condições de reembolso constantes no contrato, nem receber os imóveis em dação do BPI, conforme refere o BNI na sua missiva ADM/388/mp/2015, cingindo-se apenas a autorizar a dispensa de inclusão do valor da operação para efeitos do cálculo do rácio de solvabilidade, conforme solicitação do BNI”.

“De acordo com as evidências documentais apresentadas, o BNI não agiu apenas como mero agente, porquanto foi de sua iniciativa e responsabilidade a aplicação feita no BPI, pelo que se mantém a obrigação de reembolso do montante em dívida ao BNA”, refere a informação do DSI.

Um alto funcionário do BNA, sob anonimato, questiona a forma como Valter Filipe inicialmente validou a operação. “Ele informou o presidente [José Eduardo dos Santos] sobre o assunto da dívida? Não. Guardou a informação para si. Logo, foi conivente”.

A intervenção da Recredit

No entanto, apesar de tudo isto, o BNA foi ultrapassado. A 19 de Junho de 2017, a Recredit – Gestão de Activos assinou um “Acordo de Assunção de Dívida” com o BNI. Esta entidade estatal assumiu a responsabilidade de saldar a dívida ao BNA, em kwanzas, e num valor irrisório, se comparado com o montante real em dólares.

Criada em 2016 e detida a cem por cento pelo Ministério das Finanças, a Recredit já recebeu mais de dois mil milhões de euros do governo para a aquisição, em kwanzas, dos créditos malparados da banca nacional.

As consequências legais

Um especialista financeiro internacional afirma ao Maka Angola que “o BNA nunca pode ser o garante de um banco comercial. Esta é desde logo a primeira certeza da ilegalidade da operação”.

“Quando se pratica um acto ilegal, mesmo que depois venha a ser corrigido, esse acto não deixa de ser ilegal. Por se tratar de uma instituição pública, no caso, o BNA, deve haver uma investigação criminal”, assevera o especialista.

“No caso do BNI, a situação é mais grave, porque o BNA continua a extravasar as suas competências de regulador quando permite / autoriza a um banco insolvente condições absurdas de pagamento de dinheiro que não pertence ao BNA mas ao Estado angolano.”

Vários especialistas consideram que a Lei do Banco Nacional de Angola e os avisos desta instituição limitam o seu âmbito à supervisão e regulação do sistema bancário nacional. “O BNA apenas pode intervir no mercado monetário, através da gestão de liquidez do mesmo (absorção e cedência), fixando as taxas de juro do sistema, sempre que entender e face às condições de mercado.”

“As garantias que o BNA deve e pode exigir, mesmo para este tipo de operações, estão plasmadas na Lei, nomeadamente no seu Aviso n.º 11/2011 de 20 de Outubro, conjugado mais recentemente com a Directiva n.º 13/DMA/15.”

Por sua vez, o jurista Rui Verde nota que, em determinadas situações, os bancos centrais podem conceder “crédito em última instância”. Mas isso é quando os bancos privados estão em dificuldades. Também podem comprar títulos aos bancos para aumentar a liquidez. Todavia, garantia para operações privadas de bancos privados não é possível: “É ilegal.”

O jurista salienta duas ilicitudes nessa operação. Primeiro, “a forma de obtenção do empréstimo supostamente para o Estado, por ser uma forma desorçamentada e, por isso, ilegal”. Segundo, “a provável não aplicação dos fundos no objecto previsto”.

Aguardemos então pela decisão presidencial sobre a correspondência enviada por José de Lima Massano a João Lourenço no que diz respeito às contas do BNA.

O esclarecimento integral do PCA do BNI, Mário Palhares

Foi uma operação no montante de USD 146.000.000,00, montada para o desenvolvimento de projectos imobiliários com um banco europeu, que permitiria, face às condições prevalecentes no mercado, por via da respectiva execução, conclusão e comercialização, regularizar o crédito que tinha sido contraído.

O financiamento foi aplicado em projectos a serem desenvolvidos ultimamente em parceria com o Mar Grandioso, nomeadamente o Jardim das Rosas, o terreno onde estava instalada a Casa Inglesa e outros.

Na altura, como ainda não havia legislação específica para a criação de fundos imobiliários e a possibilidade de emissão de unidades de participação para colocar em potenciais investidores, repassámos o financiamento externo a uma instituição financeira, uma vez que o estado de desenvolvimento de cada um dos projectos e o financiamento a eles associados não permitiria, na estrutura de balanço do BNI, considerá-los na sua totalidade.

Entretanto, face à quebra da procura que se verificou no mercado imobiliário em Angola, que veio alterar os pressupostos e a rentabilidade futura dos projectos, visando a regularização integral do crédito contraído, negociamos com a Recredit a liquidação junto do BNA do referido empréstimo, tendo por contrapartida os activos imobiliários que tinham sido objecto da utilização do referido financiamento.

Relativamente ao encerramento das contas do BNA, não entendemos a justificação, até porque em Julho de 2017 foi-nos referido que as contas já estavam encerradas.

Conforme já referido, do ponto de vista legal a operação encontra-se totalmente regularizada, quer junto do BNI quer junto do BNA.

 

 

 

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