O Salário Mínimo e as Desigualdade Sociais

Samba Manuel, técnica superior com mais de 25 anos de carreira na administração pública, vive no Km 44, em Viana, e trabalha na cidade de Luanda. Para chegar ao serviço e regressar a casa gasta, num dia, 2000 kwanzas em transporte. Aufere um salário mensal de 380 mil kwanzas.

Milhares de funcionários públicos residem hoje a mais de 30 quilómetros da cidade de Luanda, em zonas sem transporte público, e têm de se deslocar diariamente à cidade, onde se concentra parte considerável da administração pública e as sedes das empresas do Estado.

Trata-se de uma média de 44 mil kwanzas mensais em “candongueiros” privados e caóticos, valor acima do salário mínimo.

Os “candongueiros” praticamente substituíram quase totalmente o Estado no fornecimento de transportes colectivos, e o Estado não cumpre o seu dever de assegurar a mobilidade adequada dos cidadãos em toda a extensão territorial.

Em 2022, o presidente João Lourenço fixou o salário mínimo em 32 mil kwanzas, conforme o Decreto Presidencial n.º 54/22. Logo, quem ganha um salário mínimo e vive distante do centro da cidade não consegue sequer cobrir as despesas de transporte de e para o serviço.

E para comer? Em reportagem recente, o Expansão avalia o preço de uma cesta básica mensal, no mercado informal, onde é mais barato, em 289 mil kwanzas, ou seja, nove vezes mais do que o salário mínimo.

Contas feitas, o salário de uma técnica superior da função pública, como Samba Manuel, apenas serve para adquirir uma cesta básica com 16 produtos essenciais, pagar o transporte para o serviço e usar os restantes 47 mil kwanzas para as despesas de água, luz, gás.

O custo de vida continua a deteriorar-se com a subida imparável dos preços. Em Fevereiro passado, a inflação homóloga em Luanda atingiu os 32,6%, conforme dados do Instituto Nacional de Estatística.

É essa condição de extrema crise, com a maioria das famílias angolanas a terem dificuldade em sobreviver, que forçou a função pública a observar uma greve geral de três dias, de 20 a 22 de Março. Os sindicalistas exigem aumentos salariais ajustados à inflação, pois, como nota o secretário-geral da Central Geral dos Sindicatos Independentes e Livres de Angola (CGSILA), Francisco Jacinto, “o poder de compra dos cidadãos caiu em 250%”.

Como pode a maioria das famílias angolanas sobreviver nestas condições? A principal causa da actual crise assenta no abandono das funções sociais do Estado.

A humanização do tratamento do funcionário público

Primeiro, como argumenta o economista Yuri Quixina, pouca atenção tem sido dedicada às políticas salariais no país, porque “80% da população activa está no mercado informal e não depende do salário”. Isso quer dizer que a maioria dos cidadãos vive ou sobrevive sem dependência salarial.

Segundo, em relação ao mercado formal de trabalho, o Estado é o principal empregador, com mais de meio milhão de funcionários públicos nas suas folhas salariais, e é o principal promotor das iniquidades salariais, como adiante se explicará.

Durante muitos anos, o Estado assentou em práticas corruptivas piramidais, que começavam no presidente da República e terminavam no mais humilde funcionário público. O salário não era a principal fonte de rendimento, mas sim outros ganhos. Nessa medida, o Estado fingia que pagava e o trabalhador fingia prestar serviço público, enquanto se empenhava em actividades que não as públicas.

Ninguém acreditava, no funcionalismo público, que se vivia do salário e, por isso, o valor do salário era irrelevante. O então presidente José Eduardo dos Santos afirmou, em entrevista à Angola em 1993, que “hoje praticamente ninguém vive do seu salário”. Assim se institucionalizou a corrupção e o saque do país como modo de vida generalizado.

A irrelevância do salário mantém-se, assim como se regista novamente a aparente institucionalização da corrupção na administração pública e a alegada captura do Estado pelo actual poder político.

Comparando o aumento do custo de vida com o aumento do salário e com o poder de compra, percebe-se facilmente que são incompatíveis.

Para superar esta situação, o Estado tem de atribuir prioridade à dignificação da pessoa humana. Trata-se de humanizar, desde logo, o funcionário público, que deve ser reconhecido pelo Estado como pilar fundamental para a construção do país e a quem devem ser assegurados condições mínimas de sobrevivência. Esta tarefa fundamental do Estado está inscrita na Constituição.

Angola tem o pior passado de escravização na história mundial. Perdeu mais de dois milhões de pessoas para a escravatura na Europa e nas Américas, onde desempenharam trabalhos forçados de alta produtividade mas sem ganhos. Depois da abolição oficial da escravatura, esta continuou sob a forma de “trabalho contratado”, que só terminou de vez com a independência. Os dirigentes angolanos não devem comportar-se como os velhos senhores escravocratas.

As disparidades e as discriminações salariais na função pública são notórias. A título de exemplo, temos de um lado os professores e médicos e, do outro, os funcionários dos ministérios das finanças, dos recursos minerais e da banca pública. Não há critérios de remuneração definidos em função da eficiência, do desempenho, da produtividade ou do mérito. Um médico de clínica geral ganha, em média, no sector público, 300 mil kwanzas mensais (perto de 10 salários mínimos), enquanto um simples técnico licenciado na Administração Geral Tributária (AGT) aufere uma média de 1,2 milhões de kwanzas mensais. Que critério explica esta disparidade salarial? A produtividade?

A verdadeira questão da despesa pública: constelação de mordomias

Um dos argumentos para não aumentar os salários da função pública tem que ver com os seus potenciais efeitos orçamentais e monetários. Alega-se que esse aumento contribuiria para expandir a massa monetária, logo, alimentando a inflação e reduzindo a sustentabilidade das finanças públicas.

Vejamos um exemplo concreto. A despesa com empregados inscrita no Orçamento Geral do Estado para 2022 cifrava-se em 2,677 biliões de kwanzas; a mesma rubrica para 2023 cifrava-se em 2,825 biliões de kwanzas. Nestes dois anos, a massa salarial pública terá subido apenas cerca de 5,5%. Já a inflação em 2023 situou-se numa média de 13,3%, embora em Dezembro de 2023 estivesse já em valores muito superiores. Quer isto dizer que o aumento dos salários tem sido extremamente inferior à inflação; na realidade, os salários têm diminuído, pelo que não é por aí que se estimula a inflação, nem que as contas públicas ficarão perturbadas.

A verdade é outra: a despesa pública excessiva resulta de uma constelação de mordomias, de que toda a gente fala mas que na prática ninguém parece querer abolir.

Por exemplo, o orçamento da Assembleia Nacional de 2022 no Sistema Integrado de Gestão Financeira do Estado (SIGFE) suplantou em 175,65% o valor estabelecido inicialmente, o mais elevado dos últimos anos. É a farra dos deputados.

O presidente da República tem batido recordes de viagens ao exterior do país, com comitivas que ultrapassam cem membros, o que indicia uma sangria dos cofres do Estado para luxos que em nada contribuem para o bem do país.

Os gestores públicos viram as suas remunerações disparar sem equivalência nos trabalhadores que lhes estão subordinados.

Tudo isto são exemplos de irracionalidades na despesa pública, as quais justificam a intervenção do Estado no sentido da contenção, ao contrário do salário dos trabalhadores.

Como defende Yuri Quixina, “o Estado tem de ajustar e combater as desigualdades salariais na função pública, onde se verificam as maiores injustiças, com base em critérios de competência, desempenho e resultados”. Segundo o economista, nunca é demais sublinhar que o Estado não deve ser o maior promotor das desigualdades sociais e tem de combater o despesismo que assola os cofres do Estado.

Em conclusão, o executivo deve promover a subida do salário mínimo, desejavelmente antecipando uma escala anual até se alcançar um patamar adequado, por forma a incorporar expectativas e evitar acelerações inflacionistas.

Não fazer nada não é solução, é provocar confusão.

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