Educação Primária: Uma Prioridade Absoluta do Estado

Na sala nº 4 há 175 alunos da Iniciação, dos 5 aos 6 anos de idade. Estão sentados em pequenas cadeiras de plástico, de várias cores, cada uma das quais é levada de casa de casa pelo respectivo utilizador. Algumas crianças sentam-se no chão de terra batida.  Têm os cadernos sobre os joelhos e assim escrevem, por falta de mesas. Não há sequer espaço para as crianças se mexerem à vontade. Estão apinhadas num recinto exíguo sem janelas laterais, que é arejado apenas pela ausência da porta e de uma janela frontal. As paredes agrestes, por falta de reboco e pintura, contrastam com as vestes coloridas dos petizes e com os penteados das meninas, adornados com punhos, missangas e ganchos de muitas cores. É uma sala de inocência e alegria, com sorrisos contagiantes e olhos cheios de vida, apesar das péssimas condições de ensino e aprendizagem.

Esta é a realidade da Escola Primária nº 175, do Casseque I, no Sector Xavier Samalata da cidade do Huambo. Inicialmente, o Estado construiu uma escola de cinco salas de aulas, e a comunidade, por iniciativa própria, contribuiu com os seus próprios recursos e construiu mais 12, oito das quais espalhadas pela comunidade como salas anexas.

Na escola-mãe, como chamam ao edifício principal, a sala nº 6, da 1ª Classe, tem 170 alunos, a sala nº 2 tem 162 alunos. A escola, de 17 salas de aulas, tem um total de 3443 alunos, distribuídos em dois turnos. Em média, há mais de cem alunos por sala.

Como é o caso das escolas primárias em todo o país, a nº 175 não tem orçamento para a gestão corrente das suas necessidades administrativas e para a sua manutenção. A referida instituição depende da comparticipação financeira dos pais, de mil kwanzas anuais, para pagamento dos guardas e dos auxiliares de limpeza.

O ensino primário em Angola é gratuito. Mas a realidade da Escola nº 175 demonstra que, em muitas regiões do país, o Estado apenas comparticipa nas despesas do ensino primário, assegurando o pagamento dos salários dos professores e dos gestores escolares e nada mais.

Além da urgência do diálogo e da decisão sobre a orçamentação das escolas primárias, há três questões fundamentais que todos os cidadãos angolanos preocupados com o rumo do país devem abordar com espírito de resolução. Trata-se de como garantir que o ensino primário seja prioridade do governo e da sociedade; como aliviar a fome nas escolas em zonas com populações vulneráveis; e como resolver a questão da mobilidade das crianças que têm de andar muitos quilómetros até à escola?

Primeiro, não haverá futuro melhor nem soberania real para Angola sem educação de qualidade que produza o devido capital humano e dirigentes que saibam trabalhar com base no conhecimento e no amor ao próximo. Logo, como transformar o tema da educação na prioridade para o desenvolvimento humano em Angola?

O caso da Escola nº 175 ilustra o modo como se tem dado resposta ao problema do elevado número de alunos, acolhendo-se mais de cem por sala, assim abrangendo o maior número possível de crianças no ensino obrigatório gratuito. Porém, isso tem-se feiro em detrimento da provisão de um processo de ensino que resulte em aprendizagens básicas efectivas por parte das crianças. Não há, neste cenário que a Escola nº 175 exemplifica, garantias de protecção dos direitos da criança que estão plasmados na Constituição (Art. 80), segundo os quais se “deve salvaguardar o princípio do superior interesse da criança”, como forma de garantir o seu “pleno desenvolvimento físico, psíquico e cultural”.

Os direitos da criança consagrados constitucionalmente são direitos humanos fundamentais que devem ser respeitados e garantidos para todas as crianças, sem nenhuma discriminação. Além da Constituição, assume especial relevo a Convenção sobre os Direitos da Criança, que é o principal instrumento internacional que reconhece e regula os direitos da criança, ratificada por Angola em 1990. Aí são estabelecidos os princípios fundamentais que devem orientar a interpretação e a aplicação dos direitos da criança. Destacam-se, o princípio do interesse superior da criança, que significa que todas as decisões e acções que afectem as crianças devem ter em conta o seu bem-estar e o seu futuro, bem como o princípio do direito à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento, que propugna que todas as crianças têm o direito de viver e de crescer de forma saudável, segura e digna, em todas as dimensões da sua personalidade.

A 22 de Janeiro passado, o vice-governador do Huambo, Angelino Elavoco, apelou ao engajamento e união de todas as sensibilidades do país na construção, “aqui e agora”, de um sistema de educação melhor. O dirigente falava na abertura do 2º Colóquio sobre o Futuro da Educação em Angola: A Prioridade para o Desenvolvimento Humano, realizado na cidade do Huambo.

Angelino Elavoco sustentou que o problema da educação em Angola radica no ensino de base e, por isso, “a nossa aposta deve estar centrada no ensino primário”. O Colóquio centrou-se nas realidades da educação primária nos municípios do Huambo e do Kuito, a capital do Bié.

No mesmo encontro, de forma consensual, as administrações municipais e os representantes das Finanças e dos Gabinetes de Estudos, Planeamento e Estatísticas (GEPE) das duas províncias defenderam que a municipalização da educação deve ser implementada com a devida orçamentação das escolas primárias.

Como medida provisória, o representante da Delegação Provincial de Finanças do Huambo, Víctor Tchissengue, sugere a adopção do modelo estabelecido para as escolas secundárias, de arrecadação de receitas próprias através de emolumentos e taxas.

Os ministérios das Finanças e da Educação, através do Decreto Executivo Conjunto nº 40/21, aprovaram as taxas e emolumentos a cobrar pelas instituições públicas do ensino secundário. Segundo o decreto, as escolas secundárias públicas estão autorizadas a cobrar pela emissão e autenticação de documentos (como certificados de habilitação), acesso às provas e outros serviços administrativos, como inscrição, confirmação de matrículas entre outros. Os valores arrecadados, de acordo com o diploma, revertem integralmente (100%) a favor da instituição cobradora.

Para já, lançamos, “aqui e agora”, um desafio ao presidente da República e chefe de Governo. João Lourenço deve doar o seu salário mensal a uma escola, como a nº 175, até que o seu governo encontre uma solução institucional que garanta os recursos mínimos para a gestão e manutenção das escolas primárias. Desse modo, o presidente demonstraria o seu empenho em liderar a mudança urgente do sistema de educação primária e inspiraria os seus ministros, os empresários e cidadãos ricos a comparticiparem na melhoria da gestão e manutenção das escolas primárias. Seria um empenho pessoal do presidente na promoção da solidariedade social, sobretudo em relação aos grupos populacionais desfavorecidos, que a Constituição estabelece, no seu Artigo 21º, como tarefa fundamental do Estado.

As tarefas fundamentais do Estado expressam os valores e os princípios que orientam a organização e a acção do poder político em Angola. Pretende-se que sejam universais, indivisíveis, interdependentes e inalienáveis, o que implica que valem para todas as pessoas, que não podem ser separadas ou hierarquizadas, que estão relacionadas e se reforçam mutuamente, e que não podem ser negadas ou violadas por ninguém.

Logo, o presidente deve ser um guia no sentido da protecção das crianças de famílias pobres, que são o grupo populacional mais desfavorecido do país.

Seguindo o apelo de Angelino Elavoco aos professores para que aprendam “a ensinar com amor e dedicação”, também se apela aos dirigentes para que aprendam a governar com amor, dedicação e sabedoria, para o bem de todos os angolanos.

Fome

Segundo, a pobreza tem vindo a agravar-se em Angola e é mais sentida pelas crianças que frequentam a escola com fome.

Na Escola nº 142, no Bairro de São José, na cidade do Huambo, a professora Ana Almeida conta como a fome assola os seus estudantes e não só. Durante o 2º Colóquio sobre o Futuro da Educação em Angola: A Prioridade para o Desenvolvimento Humano, decorrido no Huambo, a 22 de Janeiro passado, a professora deu o exemplo de um aluno seu de 14 anos, da 4ª Classe, que desmaiou de fome dias antes. “Estava há mais de 24 horas sem comer. Estava trêmulo. O aluno vem de uma comunidade de camponeses e vendedores ambulantes com muitas carências e muito desemprego à volta”, relatou.

O município do Huambo, do qual a Escola nº 142 faz parte, recebe mensalmente três milhões de kwanzas (equivalente a 3600 dólares ao câmbio oficial) para atender 208 mil alunos do ensino primário, distribuídos por 147 escolas. Esse valor corresponde a 14 kwanzas mensais por cada criança, que não chega para comprar um pão carcaça (o menor do mercado). Ou seja, a verba não permite a distribuição mensal de um simples pão pequeno (como se diz), sem recheio, ou para metade dos alunos. As administrações municipais, que fazem a gestão das merendas escolares, têm de escolher para onde encaminhar os ínfimos recursos colocados à sua disposição. A Escola nº 142 não é abrangida pela distribuição da merenda escolar.

Há fortunas do Estado que são gastas anualmente em projectos e contratos absurdos, trivialidades como a aquisição de viaturas topo de gama para dirigentes políticos, gestores públicos e deputados que podem circular em viaturas menos caras. Esses fundos podem ser canalizados, de forma estrutural, para a criação de lavras e cozinhas comunitárias nas zonas rurais e vulneráveis, para a provisão auto-sustentável de alimentos saudáveis para as merendas escolares primárias.

Mobilidade

Na província vizinha do Bié, a delegação municipal de Educação do Kuito manifesta-se preocupada com a mobilidade de muitos estudantes do ensino primário, que, em tão tenra idade, têm de caminhar diariamente sete quilómetros até à escola. Uma dessas escolas é a nº 275 – do Soba Kapango, na localidade de Kuquema.

Conclusão

Temos de passar do discurso à acção, encarando a criação de uma boa rede de ensino primário como uma absoluta prioridade do Estado. Essa prioridade deve ser demonstrada na afectação e supervisão permanente dos recursos necessários para que os filhos do povo aprendam com qualidade e desde tenra idade sintam a dignidade, o carinho e a protecção que o Estado, em particular os dirigentes, lhes devem.

É responsabilidade colectiva do governo e da sociedade civil a mobilização de todo o país para a prioridade absoluta da educação. É notório que os angolanos se unem publicamente em torno de alguns jogos da selecção nacional de futebol, quando esta ganha, mas não o faz pelo futuro e bem-estar de todos angolanos, que depende da educação da sociedade.

Urge uma política pública intersectorial que combine a assistência social, a saúde e a educação como um triângulo essencial para estimular e potenciar as faculdades cognitivas das nossas crianças

Em Abril próximo, Angola celebrará 22 anos de paz. No próximo ano, serão os 50 anos da independência. O país é abençoado com vastos recursos minerais. Mas a maior riqueza de Angola deve ser a educação qualitativa do seu povo e o seu desenvolvimento humano integral. Trata-se da promoção de todos os homens e mulheres e o homem e a mulher no seu todo, como definia o Papa Paulo VI na sua encíclica Populorum Progressio, de 1967. Sem isso, continuaremos a viver numa grande ilusão.

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