Vergonhosa Toponímia Desonra Angola

No Bié, o MPLA – há 49 anos no poder – é omnipresente. A UNITA tem raízes no Bié, onde se situa a terra natal do seu fundador, Savimbi, e do seu segundo líder, Samakuva. O Bié é o centro de Angola. Tem sociedade civil, várias instituições académicas e um inacreditável indicador de total falta de respeito pela independência nacional.

Várias placas identificativas, modernas e elegantes, assinalam as ruas Salazar e Marcelo Caetano, paralelas entre si no centro administrativo – o coração da cidade do Kuito, capital do Bié. Estas ruas abraçam o famoso “Largo da Pouca Vergonha”, oficialmente designado “Espelho D’Água”. O governo, nas suas trapalhices sem nexo, decidiu mudar a grafia para Cuito. As placas foram colocadas em 2021, já na era do presidente João Lourenço e no âmbito do seu Plano Integrado de Intervenção nos Municípios (PIIM).

Este é o Bié que sempre resistiu a Portugal e que protagonizou uma das gestas mais heróicas da resistência contra o colonialismo. Em 1890, o reino do Bié resolveu terminar a ingerência portuguesa nos assuntos da sua nação. Expulsou os feitores e oficiais portugueses, bem como os colonos e comerciantes do país agressor das suas terras. Foi necessário um forte confronto militar para que os portugueses derrubassem o destemido rei do Bié, Ndunduma I. Porém, não existe no Kuito uma única rua que perpetue a memória daquele que foi o seu rei.

Este é o Kuito que, na qualidade de capital provincial, foi palco da mais longa, cruel e autodestrutiva batalha urbana (1993-1994) dos 27 anos de guerra civil, entre filhos e filhas da Mãe Angola.

O povo combatente do Bié resistiu de forma corajosa. É nesta localidade de resistência que hoje se mantêm as ruas Salazar e Marcelo Caetano, os maiores símbolos da repressão colonial e do fascismo português.

Salazar foi o ditador de Portugal entre 1932 e 1968, responsável pela centralização e menorização dos povos angolanos, contra quem eclodiram as revoltas de 1961, resultando nos massacres da Baixa de Cassanje, em Malanje; de 4 de Fevereiro, em Luanda; e de 15 de Março, no Norte. Todos os anos, com a mesma solenidade e orgulho, o governo de Angola comemora as duas primeiras revoltas. Ao mesmo tempo, mantém a homenagem a Salazar e o seu sucessor. É incompreensível.

Foi Salazar quem mandou a tropa portuguesa aplacar os desejos de independência de Angola, mandou bombardear, queimar e matar. Marcelo Caetano, o ditador que lhe sucedeu, manteve a guerra e não desistiu de impedir a independência de Angola. Teve de ser derrubado pelos militares portugueses em 25 de Abril de 1974, para finalmente se abrirem as portas ao processo democrático em Portugal e a independência em Angola.

Que sentido faz o governo e o bravo povo do Bié manterem a homenagem aos dois ditadores coloniais que mais lutaram contra a independência de Angola e maltrataram o povo angolano? O que explica este fenómeno?

Angola enferma de vários problemas gravíssimos, dos quais se destacam, para o que aqui interessa, a desvalorização real da independência e da soberania nacionais, lembradas apenas para o exercício do poder pessoal e em discursos oficiais com pouca seriedade.

Não existe uma liderança e autoridade que inspire, eduque e sirva de referência moral e política para o progresso da sociedade. Não há confiança entre os governantes e o povo. É a desmoralização da sociedade, a par de uma preguiça institucional que mantém uma rotina burocrática disfuncional e caduca. É assim que, num processo de autodestruição, os angolanos impedem o desenvolvimento humano no país, em vez disso protegem a mediocridade e o egoísmo dos detentores do poder e seus seguidores.

Perdeu-se a chama da liberdade nacional. O orgulho nacional parece vir ao de cima apenas quando Angola ganha um jogo de futebol, o que é raro.

Restam os saudosismos do tempo do colonialismo, a veneração das elites a tudo o que é Portugal. Restam os lamentos sobre a fome e a evocação dos preços baratos do arroz e da coxa de frango na era de José Eduardo dos Santos. Somos o cúmulo da nossa pequenez.

Mas nunca é demasiado tarde para se erguerem as vozes de uns poucos que ainda se preocupam com a história e com a dignidade colectiva dos angolanos. Devemos exigir, de acordo com a Lei de Bases da Toponímia (Lei nº 14/16), a mudança de nomes das ruas Salazar e Marcelo Caetano. Que sejam os portugueses a homenagear os seus ditadores e fascistas. Em Angola, também tivemos as nossas ditaduras e, tarde ou cedo, teremos de discutir a narrativa da nossa própria trágica história de massacres de irmãos contra irmãos e como enquadrar tais líderes na memória colectiva e na narrativa histórica do país.

Para já, como estabelece a Lei de Bases da Toponímia, a função desta é perpetuar figuras relevantes locais, nacionais e estrangeiras, preservar e valorizar a cultura nacional e internacional, assim como manter vivos e “perpetuar aspectos culturais de honorabilidade”.

A referida lei permite que cidadãos, de forma individual ou colectiva, peticionem a administração municipal para a mudança do nome de uma rua, bairro, aldeia, etc. quando este afecte negativamente os interesses dos angolanos. Ora, a homenagem perpétua a Salazar e a Marcelo Caetano ofende a memória do rei Ndunduma I, que lutou contra a colonização, em defesa do seu povo, e a dos milhares de heróis que lutaram pela independência nacional. Isto é, não reflecte a realidade política actual.

O saudosismo e a emulação de práticas colonialistas de inferiorização dos angolanos por parte de alguns dirigentes não devem continuar a ser impostos ao povo. Este continua a sofrer de forma inclemente, por conta do vil desprezo a que é votado, da incúria e da governação de faz-de-conta.

Porque não perpetuar nomes de angolanos que simbolizam a resistência do Kuito, como o general Alfredo Kussumua, tombado em 1993? Porque não perpetuar mais nomes de angolanos que muito lutaram por este país? Angola teve uma figura extraordinária e humilde em João Pedro Francisco “Karitete”, que foi o único nacionalista angolano a participar na planificação e acção das três principais revoltas de 1961, que desencadearam a luta de libertação nacional. Trata-se da Revolta da Baixa de Kassanje, a 4 de Janeiro; o 4 de Fevereiro, em Luanda; e o 15 de Março, no Norte do país. Mas Karitete era um membro da União dos Povos de Angola (UPA), a predecessora da FNLA, da qual foi deputado à Assembleia Nacional de 1992 a 2008. Por sua vez, a memória do grande homem de cultura que foi Jaka Jamba, um histórico da UNITA, deputado e diplomata, também pode e deve ser perpetuada com o nome de uma rua.

Se queremos homenagear figuras portuguesas de relevo, devem ser aquelas que contribuíram para a independência e o reconhecimento internacional de Angola. Mário Soares, no seu centenário que se comemora este ano, conduziu às independências de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. O antigo presidente Ramalho Eanes abriu os horizontes para o restabelecimento das relações diplomáticas entre Portugal e Angola, também poderia ser considerado para tal honraria. Bastaria, também, manter a Rua Teófilo Braga, no centro administrativo do Kuito. Trata-se do segundo presidente de Portugal, reconhecido como erudito.

Mas, sobretudo, enalteçamos a nossa independência e soberania, que não estão para venda e devem ser cultivadas e aprofundadas.

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