A Descolonização do Direito Angolano, de Novo
O aspecto mais caricato da recente decisão inglesa de congelamento mundial dos bens de Isabel dos Santos foi termos três personagens não angolanas a perorar sobre determinada norma do direito angolano, o que foi essencial para a decisão.
Se é normal que um juiz inglês se debruce sobre uma norma angolana fundamental para a sua decisão, já espanta que as partes (Unitel e Isabel dos Santos), ambas com nacionalidade angolana, apresentem pareceres para sustentar as suas teses sobre direito angolano elaborados por juristas portugueses professores em Portugal.
Do lado da Unitel, tivemos Dário Moura Vicente, nascido em Lisboa em 1962, professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, especialista em direito civil e comercial, que em nenhuma das suas publicações mais relevantes versa sobre direito angolano. Não há dúvida de que é um dos mais eminentes juristas portugueses, mas o seu conhecimento sobre Angola parece limitar-se à prelecção de aulas esporádicas nalgumas universidades angolanas, muito provavelmente sobre matérias no âmbito do direito comparado.
Do lado de Isabel dos Santos, tivemos Maria de Fátima Ribeiro, professora associada da Universidade Católica Portuguesa, especialista em direito das empresas e negócios. Na sua vasta bibliografia até se encontram alguns estudos comparados sobre Portugal e Brasil, mas, aparentemente, nada sobre Angola. É uma das mais promissoras juristas portuguesas da nova geração.
A questão que se coloca não é sobre os juristas portugueses contratados pelas partes angolanas, que são da mais alta estirpe, mas, e citando o académico ugandês Mahmood Mamdani a propósito das suas críticas ao programa de Estudos Africanos da Universidade da Cidade do Cabo (África do Sul), o problema não é o que está dentro, mas o que fica de fora. E o que fica de fora, neste caso, são os académicos angolanos ou que estudam preferencialmente Angola.
Não há em Angola peritos de craveira mundial que se saibam pronunciar sobre o direito angolano?
Vamos, por amostra, verificar o que tem a apresentar a Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto (na foto). Esta faculdade informa que tem 94 docentes, dos quais, nove professores catedráticos, oito associados, 32 auxiliares, 30 assistentes, 13 assistentes-estagiários e dois investigadores. Muitos dos catedráticos são nomes conhecidos em Angola: Carlos Feijó, Elisa Rangel, José Octávio Serra Van-Dúnem, Luzia Sebastião, Raul Araújo, Carlos Burity da Silva. Acontece que se percebe desde logo que têm outras e muitas funções, não exercendo em contínuo as funções docentes e de investigação. Carlos Feijó foi ministro, é um advogado de sucesso e a sua obra é essencialmente de direito administrativo; Elisa Rangel é juíza do Tribunal de Contas; Van-Dúnem é presidente do Conselho Económico Social; Luzia Sebastião e Raul Araújo já foram inúmeras coisas e tiveram variadas funções; Burity da Silva é juiz do Tribunal Constitucional.
O que se verifica é que a função de professor catedrático parece ser mais uma distinção honorífica de alguém que se alcandorou aos mais altos voos da nação, e não um lugar de docência e investigação.
Parece não existir, entre os docentes, uma produção significativa de obras científicas de vulto, de monografias originais, de manuais fixadores da doutrina angolana. Não quer dizer que não haja esforços individuais. De memória, lembro-me do livro de Carlos Feijó com Freitas do Amaral acerca do direito administrativo angolano, e do livro de Carlos Burity da Silva sobre teoria geral do direito civil. Outros haverá. O que não há é uma produção sistemática, constante, permanente e acessível.
Se formos a outra universidade prestigiada, a Universidade Católica de Angola, temos ainda mais dificuldade em encontrar informação. Depois de algumas peripécias informáticas, o dado relevante é que o curso de Direito é dirigido pela mestre Márcia Nigiolela de Brito e existe desde 1998. Na Católica, a tarefa é hercúlea, pois desde logo há que capacitar o corpo docente com graus de doutor.
A conclusão é que a Unitel e Isabel dos Santos não pecaram por falta de patriotismo intelectual – o que se passa é que falta densidade à produção de conhecimento jurídico em Angola.
Não é uma questão individual, porque os valores individuais obviamente existem e são de alta craveira. É uma questão institucional e de sistema. Ainda não se criou um sistema de produção científica em Direito que autonomize a disciplina face a Portugal.
Nesse sentido, este texto não pretende tanto criticar quanto, acima de tudo, apelar à criação de um movimento de autonomização científica do Direito angolano, que, naturalmente, tem de depender dos seus cultores.
Para início de conversa, duas medidas fundamentais deveriam ser tomadas pelo Estado, de forma a criar uma rede de trabalhos científicos.
A primeira é tornar obrigatório que todos os professores catedráticos e associados, para o serem (ou continuarem a ser), publiquem pelo menos uma monografia sobre o tema das suas disciplinas. Em linguagem simples, cada professor deve escrever um livro próprio sobre a sua disciplina, seja um manual abrangendo a matéria toda, seja uma monografia sobre um tema específico da matéria. Quem não fizer isso, deve perder o seu título. Isto é um pouco básico, mas é o início do caminho.
Em segundo lugar, todas as Faculdades de Direito do país devem unir-se (ou ser obrigadas a unir-se) para criar uma Imprensa Angolana de Direito, uma editora de todos os livros sobre o direito angolano, um pouco à semelhança do que agora se fez com a Scottish University Press, em que as universidades escocesas se reuniram para criar uma forte editora universitária escocesa.
Escrever livros e monografias, e criar uma editora universitária ambiciosa podem parecer pequenos passos, mas são os primeiros para se criar um direito angolano com projecção universal, deixando de estar dependente de outros.