Compatriota, Uma Carta para Ti (Parte 2)

A memória

Temos sempre de lembrar as nossas origens, o nosso percurso histórico enquanto Estado, para não estarmos sempre a sacrificar a população.

Durante a escravatura, o maior sonho colectivo dos nossos antepassados era a abolição do maior tráfico de seres humanos e de desumanização registados nos anais da história universal. Estima-se que mais de 40% dos mais de 12,5 milhões de escravos transportados para as Américas eram provenientes de Angola e do Congo.

E o que faz o governo em relação a essa nossa memória? Muitos esclavagistas continuam a ser homenageados em Angola, com nomes de ruas. É o caso de Arsénio Pompílio Pompeu do Carpo, considerado um dos maiores traficantes de escravos no século XIX e que liderou campanhas contra a abolição desse hediondo negócio. É imortalizado com uma rua no Bairro Vila Alice, em Luanda. Não há qualquer respeito pela memória dos nossos antepassados. Falta-nos honra e dignidade.

O nosso território registou, também, o período mais longo de colonização europeia em África. Daí o sonho colectivo de independência do jugo colonial português. Entretanto, a dois anos de celebrarmos meio século de independência, o governo angolano continua a homenagear até o ditador fascista português Oliveira Salazar, com uma rua que leva o seu nome na cidade do Kuito, Bié. Paralela a essa, encontra-se a Rua Marcelo Caetano, em honra ao sucessor de Salazar derrubado pelo movimento de 25 de Abril de 1974. O nosso Direito, fonte fundamental para instituições fortes, continua a ser uma cópia miserável do deficiente Direito português, cuja influência, para além de Angola, não passa a fronteira do Algarve.

Apesar da oportunidade que tivemos de nos tornarmos independentes, preferimos não descolonizar as nossas mentes, o nosso Direito e as nossas ruas.

Não há respeito pelos inúmeros angolanos que se sacrificaram pela independência de todos nós. É a ignomínia!

Será que os dirigentes e a sociedade, de um modo geral, têm mesmo noção do que significa construir uma nação?

Com a independência, os processos de exclusão e ambição dos líderes políticos mergulharam o país numa das mais sangrentas guerras civis de que África tem memória. Daí o sonho colectivo da paz.

Com a paz, em 2002, sobreveio a ganância dos dirigentes políticos, famílias e associados, que pilharam desenfreadamente o país e criaram uma burguesia administrativa. Aperfeiçoou-se a destreza da classe dirigente em processos de exclusão – dos dividendos da paz – da maioria da população e dos sectores não-alinhados da sociedade.

Então, o sonho colectivo identificou-se com a liberdade, com novas lideranças, a boa governação e a luta contra a corrupção.

E veio João Lourenço. E os erros repetem-se.

Em vez de luta contra a corrupção, temos a luta contra alguns suspeitos escolhidos a dedo. A luta contra a corrupção deveria ter começado pelas reformas no topo da administração pública, de modo a dotá-la de lideranças de mérito e funcionários públicos competentes. Este seria o ponto de partida para garantir a funcionalidade de um Estado em que os salários sejam dignos e compatíveis para se viver sem esquemas de corrupção.

Basta ver como o sistema judicial se tem consolidado como o epicentro da corrupção que procura combater, porque não sofreu reformas. Um sistema judicial não reformado congrega em si mesmo todos os defeitos do passado que pretenderia superar. Sujeita-se a ser considerado um caldo de corrupção, nepotismo, ineficiência e atraso na aplicação da lei. Não haverá Estado de Direito sem um sistema judicial totalmente modificado, aberto, transparente, competente e organizado, baseado no mérito e no conhecimento. Poderia ser este o legado de João Lourenço. Mas o tempo passa e vemo-lo enredado em hesitações, preferindo manter os velhos hábitos.

Em vez da boa governação, temos a reciclagem constante de maus governantes e de maus hábitos.

Vejamos mais um erro, que tem gerado polémica nos últimos dias, quando deveria ser um factor de aproximação e catarse dos cidadãos.

O presidente João Lourenço teve a boa iniciativa de criar a Comissão para a Implementação do Plano de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos (CIVICOP). Ao fim de dez anos, poderia deixar o legado de reconciliação, de ter sarado as feridas dos conflitos. Ora, reconciliação implica tratar os casos dos massacres, matanças e assassinatos numa perspectiva de justiça restaurativa. Procura-se examinar o impacto prejudicial de um ou vários crimes e, em seguida, determinar o que pode ser feito para reparar o dano provocado por esses crimes, enquanto se responsabilizam moralmente, se for o caso, as pessoas que os causaram pelas suas acções. Se não se trata de um puro perdão, também não é uma punição crua. É um caminho de equilíbrio e cura das feridas de uma sociedade.

No entanto, corre-se o risco de perder a oportunidade de verdadeira reconciliação com o activismo actual do chefe do Serviço de Inteligência e Segurança de Estado (SINSE), general Fernando Garcia Miala, coordenador adjunto da CIVICOP e o líder de facto do processo. Ora, o SINSE é sucedâneo da DISA, um dos principais protagonistas dos massacres do 27 de Maio; e em 2012 esteve envolvido nos assassinatos políticos de Cassule e Kamulingue, este último sacrificado como alimento para os jacarés no Rio Bengo.

O SINSE tem e projecta uma memória institucional que não o torna um elemento mediador adequado para uma verdadeira justiça restaurativa. Devia ser um auxiliar técnico do processo e não ter um papel de liderança. O General Fernando Miala deveria estar nos bastidores, apoiando, mesmo aconselhando, mas não poderia ser o rosto da iniciativa.

O protagonismo dirigente da CIVICOP deveria ter sido entregue a figuras com perfil para promover a reconciliação: membros do clero, magistrados jubilados, oficiais-generais na reserva, ou figuras de indesmentível mérito da sociedade civil. Por aqui se vê que não perdemos uma oportunidade para a perdermos.

Assim, citando mais uma vez Acemoglu e Robinson, “a sociedade precisa de gente nova que introduza as inovações mais radicais e tanto essa gente nova como a destruição criativa que desencadeia têm de vencer, amiúde, diversas fontes de resistência, incluindo os governantes e elites poderosas”.

Compatriota,

Olhemo-nos olhos nos olhos e busquemos o que nos resta de esperança e sonho de liberdade para definirmos três princípios de unificação da sociedade. Só com união de propósito poderemos erguer a confiança necessária para construirmos a nação, com sabedoria. Temos de ultrapassar a leviandade dos políticos que, de um lado e do outro, se complementam como a caixa de fósforo e a gasolina.

O caminho é de todos, com todos, rumo a uma Angola comum em que se viva bem.

Paz e amor.

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