A Instrução Contraditória do Caso Kopelipa

Decorreu na semana passada uma audiência referente à instrução contraditória do caso penal em que são arguidos os generais Kopelipa e Dino, o advogado Fernando Gomes dos Santos, o cidadão chinês You Haming e as companhias CIF, Plasmart International Limited e Utter Right International Limited.

A instrução contraditória não é um julgamento, nem representa qualquer decisão final, ou próxima do final, de um caso criminal. É apenas uma fase inicial em que, pela primeira vez, um juiz averigua da viabilidade da acusação feita pela Procuradoria-Geral da República (PGR) / Ministério Público (MP). Aqui não se trata de condenar ou absolver o general Kopelipa e os restantes, mas somente de obter uma decisão de um juiz que confirme ou negue o mérito da acusação, com vista a submeter o arguido a julgamento ou a arquivar o processo (artigo 332.º do Código de Processo Penal – CPP).

A decisão do juiz pode concordar com a acusação da PGR e o processo seguir para julgamento, e então sim, após esse julgamento, o general Kopelipa será absolvido ou condenado.

Portanto, a decisão da instrução não é um julgamento, nem sequer um pré-julgamento, mas sim uma avaliação da acusação. É importante vincar este aspecto, para que ninguém crie expectativas de que o caso seja resolvido agora (mesmo que o juiz decida pelo arquivamento, por considerar que a acusação não tem sentido, essa decisão pode ser objecto de recurso — art.º 354.º CPP a contrario). Neste momento, portanto, o que está em causa é apenas mais um passo no longo processo criminal.

Depois deste esclarecimento prévio, vale a pena debruçarmo-nos sobre alguns aspectos desta fase de instrução contraditória. Para começar, há que mencionar a questão do tribunal competente. Esta instrução está a ter lugar junto do Tribunal Supremo. Temos sérias dúvidas de que um ex-ministro (por muito importante que tenha sido, e foi-o) e/ou um general que não está no activo tenham direito a que o Tribunal Supremo funcione como tribunal de primeira instância. Esta matéria parece, actualmente, ser regulada pelo artigo 289.º do CPP, que terá revogado a regulamentação anterior sobre o tema. Aí conferem-se imunidades a “Ministros de Estado, Ministros, Secretários de Estado, Vice-Ministros” (art.º 289, n.º 4) e a “Oficiais Generais das Forças Armadas Angolanas e Comissários da Polícia Nacional no activo” (art.º 289, n.º 5).

A não ser que exista outra norma expressa noutro texto legal com referência a ex-ministros ou generais na reserva, não vislumbramos que o Código do Processo Penal sustente o julgamento dos generais Kopelipa e Dino no Tribunal Supremo, por uma razão muito simples: eles não são ministros nem generais no activo.

Na verdade, acreditamos que o presente processo, ao ter lugar em foro especial, pode violar o princípio constitucional da igualdade, uma vez que a categoria de ministro não é uma qualidade natural inerente a uma pessoa, mas um mero estado passageiro.

Na nossa visão, o princípio da igualdade impõe que estes privilégios, que no direito angolano se chamam imunidades, devam ter sempre uma interpretação o mais restritiva possível, não sendo passíveis de extensão ou aplicação analógica; esta visão protege o Estado democrático, em que um ministro é um cidadão-servidor do povo e não alguém que goza de um direito superior. Assim sendo, é com muitas dúvidas que encaramos o facto de estes julgamentos decorrerem no Tribunal Supremo logo na primeira instância.

A par desta dúvida processual, deparamos com outras dúvidas de tipo substantivo, as quais, tendo em conta que o processo se encontra em segredo de justiça até ao despacho de pronúncia (art.º 97.º do CPP), apenas podemos abordar em termos genéricos.

A primeira questão é óbvia. Onde estão Manuel Vicente e a Sonangol no processo-crime? A vice-procuradora-geral da República, Inocência Pinto, defendeu recentemente que a PGR tem como missão promover a legalidade democrática e a fiscalização da legalidade do exercício da função jurisdicional. É esta vertente da imperatividade da legalidade que impede que a PGR escolha acusar uns e não outros, que tenha poder discricionário para imputar crimes a uns e não a outros. A partir do momento em que há uma história que envolve várias pessoas, todas essas pessoas têm de ser acusadas de acordo com o seu comportamento. O que acontece é que a história que a PGR contou para este processo, de acordo com o que já veio a público, envolve directamente Manuel Vicente, mencionando que um dos arguidos se apropriou dos 24 edifícios do Estado, construídos pela empresa Guangxi na centralidade do Zango O, contratou a empresa Delta Imobiliária, que os vendeu à Sonangol, EP, através da Sonip, Lda, mediante orientação do engenheiro Manuel Domingos Vicente, pelo valor global de US$ 475 347 200,00 (quatrocentos e setenta e cinco milhões trezentos e quarenta e sete mil e duzentos dólares americanos) ou que Manuel Vicente era dono de uma das imobiliárias referidas a propósito dos desvios de fundos. Fontes credíveis, aliás, afirmam que Vicente era o coordenador de todas as actividades com a China.

Se falta Vicente, também não se percebe a ausência de dois cidadãos chineses, Sam Pa e Lo Fong Hung. Como temos defendido, este processo tem um impacto político muito grande, pois pode permitir lançar luz sobre os negócios entre Angola e a China e criar um mapa de entendimento de algo que até hoje não é necessariamente claro.

A realidade é que sem a intervenção em tribunal de Manuel Vicente, Sam Pa e Lo Fong Hung, cujos papéis detalharemos depois de levantado o segredo de justiça, nunca se conseguirá entender inteiramente a narrativa nem descobrir a verdade, como manda o Código do Processo Penal nos seus artigos 48.º, 148.º, 185.º, entre outros.

Terminamos com um facto óbvio que deverá ser tomado em consideração nesta decisão judicial como forma de simplificar o processo, a bem da celeridade.

É público que o general Kopelipa entregou ao Estado angolano o património do CIF Angola. Este facto tem implicações no enquadramento do crime de burla, uma vez que, face ao novo Código Penal, quando a coisa furtada for restituída ou o prejuízo causado pelo furto inteiramente reparado até à publicação da sentença ou do acórdão em 1.ª instância, extingue-se a responsabilidade criminal, mediante a concordância do ofendido e do arguido, sem dano ilegítimo de terceiro ou mesmo (artigo 399.º por remissão do artigo 423.º do CPP). Portanto, a entrega de bens terá forçosamente de ter uma avaliação penal positiva por parte do juiz. O mesmo devendo acontecer às várias leis da amnistia aprovadas, designadamente em 2016 e 2023. Esta é a altura processual adequada para proceder ao “desbaste” do caso, retirando já matérias óbvias, como as ligadas à entrega de bens e amnistia, que extinguem o procedimento criminal.

Com este texto não se pretende a defesa ou condenação de nenhum dos intervenientes, mas a clarificação de alguns pontos de relevo para o bom entendimento da causa.

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