OGE 2023: a Acumulação de Erros Políticos

Após um longo, e comprometedor, período de silêncio, a ministra das Finanças Vera Daves apareceu publicamente, aparentemente num press breakfast (pequeno-almoço para a imprensa) para explicar o surpreendente “buraco” orçamental relativamente a 2023. Relembremos que de uma previsão de saldo positivo, isto é, de receitas superiores às despesas, anunciada quando da aprovação do Orçamento Geral do Estado (OGE) para 2023 no valor de 0,9% do PIB, agora prevê-se um escandaloso défice (despesas superiores às receitas) no montante aproximado de 10 mil milhões de dólares.

Em primeiro lugar, a ministra anunciou que não vai proceder a uma revisão do OGE de 2023, mas concentrar-se na preparação do OGE de 2024, dado que em relação a 2023 vai proceder a “cativações”. “Cativações” quer dizer que não vai autorizar despesas previstas no OGE. Por exemplo, se para a construção de escolas estão previstos 1000 dólares no OGE, a ministra cativa 500, e só permite gastar 500. Obviamente, as “cativações” representam uma revisão às escondidas do OGE, com a agravante de que serem feitas sem o acordo da Assembleia Nacional. Na verdade, a ministra diz que não revê o OGE, quando o está efectivamente a rever. No entanto, isto não é o aspecto mais relevante da intervenção da ministra. Aquilo que interessa são sobretudo as justificações que deu para o mencionado “buraco” orçamental. Fica claro das palavras da ministra que foram duas as razões para o descalabro orçamental: a quebra na produção petrolífera que gera a diminuição de receitas e o retomar do pagamento do stock da dívida pública à China.

Não se vai aqui discutir as questões económicas subjacentes a estes temas, nem outras causas para a situação deficitária do orçamento, pois tal já foi exaustivamente feito em artigo anterior. Vamos aceitar as explicações da ministra como boas e a partir daí perceber onde estarão os erros. Na realidade, o importante é referir os erros políticos que levam à situação descrita. Ao contrário daquilo que a ministra insinua, não se tratou de condições externas tempestuosas que se impuseram à economia angolana, mas do resultado de erros políticos anteriores, que determinam, mais uma vez, a situação frágil das finanças públicas do país. E este facto leva, mais uma vez, a duvidarmos da eficiência das políticas do Fundo Monetário Internacional (FMI), ainda que não seja esse o nosso foco, mas sim as decisões internas do governo angolano. Em concreto, estamos perante recuos e falta de coragem na decisão política e não de ventos contrários na economia.

Comecemos pela quebra da produção petrolífera. Há anos que se sabe que as estruturas de exploração petrolífera angolana estão obsoletas e a necessitar de grande investimento externo, e que a mera exploração ordinária dos actuais poços tem uma sustentação pouco significativa. Escrevemos sobre isso variadas vezes. A privatização parcial da Sonangol aberta a investidores credíveis internacionais e nacionais, bem como a funcionários, como também defendemos há anos a fio, teria sido uma forma de inverter esse ciclo de subinvestimento, atraindo novo capital e novas ideias. Se, na autocrática Arábia Saudita, o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman teve coragem de privatizar uma pequena parte do seu capital, destinado a investidores institucionais e particulares, não se percebe a razão por que a Sonangol evita fazer o mesmo, entretendo-se o presidente do seu Conselho de Administração em exercícios linguísticos que na prática cancelam a dita privatização.

Com o adiamento permanente da privatização parcial, a empresa continua sem transparência, sem investimento e sem objectivos estratégicos claros, como se vê em relação à sua inacção naquilo que diz respeito à participação na Galp e no Millennium BCP em Portugal. Aquilo que devia ser uma empresa bifocada no petróleo e nas energias renováveis, aberta ao mercado e investimento internacional, e “alavancada” nas sinergias das suas fortes participações em Portugal, continua a ser uma caixa opaca cujo interior não se vislumbra. É neste recuo embrulhado que reside parte do caos orçamental.

Em relação à China, também se coloca a questão da falta de planeamento e da incapacidade de antecipação. Se havia pagamentos de stock de capital da dívida pública à China no primeiro semestre de 2023, é evidente que deviam estar previstos no OGE. Portanto, ou não estavam e foi um erro técnico, ou estavam e não se percebe. No entanto, é evidente que a dívida à China é um tema de superior interesse nacional, e que neste momento os objectivos de Angola e da China divergem. Angola tem de estender os prazos de pagamento e diminuir os pagamentos de juros, enquanto a China, ainda não superada a crise trazida pela covid-19 e com uma dívida interna monstruosa, precisa de dinheiro.

Há que ser claro: os interesses dos dois países são neste momento divergentes. Mas quando há interesses divergentes, é preciso confrontar as partes. A China não pode exigir pagamentos a Angola que coloquem em risco a sua estabilidade, quando aliás nem sequer está resolvido o problema da chamada “dívida odiosa” (aquela dívida pública apropriada por pessoas privadas), em que vários chineses também participaram.

É evidente que a China tem de ser chamada à mesa de negociações para renegociar o pagamento da dívida nos termos expostos, sendo também óbvio que o governo tem de tomar a iniciativa nesse sentido. No presente momento histórico de Angola, não há que ter medo da China e vice-versa. Os dois países estão condenados a entenderem-se, mas é necessário colocar as cartas na mesa. A conclusão essencial é que o “buraco” orçamental angolano não é fruto de nenhum acontecimento indomável na economia mundial, mas de erros políticos internos que, naturalmente, têm de ser corrigidos.

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