Participação contra Ilegalidade Presidencial

Foi hoje formalmente apresentada ao procurador-geral da República, general Hélder Pitta Groz, uma participação contra a ilegalidade praticada pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial e pelo Presidente da República de Angola. Trata-se da nomeação de Carlos Cavuquila como juiz conselheiro do Tribunal Supremo, apesar de este figurar em dois processos judiciais por descaminho de verbas públicas, num dos quais foi já condenado.

À PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA

LUANDA

DIGNÍSSIMO PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA

GENERAL HÉLDER PITTA GROZ

Luanda, 10 de Julho de 2023

Assunto: Participação contra a ilegalidade praticada pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial e pelo Presidente da República

Rafael Marques de Morais, cidadão nacional, portador do Bilhete de Identidade n.º [dados omitidos], residente em [dados omitidos], Luanda, vem, com base nos factos em seguida expostos, participar à Procuradoria-Geral da República o cometimento de um acto que, a seu ver, transgride a legalidade e põe em causa a ordem constitucional e o Estado Democrático e de Direito, e que, nessa medida, deve ser anulado.

Trata-se da nomeação de Carlos Alberto Cavuquila como Juiz Conselheiro do Tribunal Supremo de Angola, em clara violação do artigo 41.º, n.º 1, c) do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei n.º 7/94, de 29 de Abril).

A nomeação de Carlos Cavuquila como Juiz Conselheiro do Tribunal Supremo

  1. Em 16 de Junho de 2023, a Presidência da República anunciou que, considerando ter o Conselho Superior da Magistratura Judicial designado Carlos Alberto Cavuquila para o provimento da vaga de Juiz Conselheiro do Tribunal Supremo, o Presidente da República nomeava Carlos Alberto Cavuquila para o cargo de Juiz Conselheiro do Tribunal Supremo.
  2. A 19 de Junho de 2023, o Presidente da República deu posse a Carlos Alberto Cavuquila como Juiz Conselheiro do Tribunal Supremo.
  3. Antes, pela Resolução n.º 7/23 de 14 de Junho, o Plenário do Conselho Superior da Magistratura Judicial havia designado para o provimento da vaga de Juiz Conselheiro do Tribunal Supremo, reservada a juristas de mérito, Carlos Alberto Cavuquila, por se tratar do candidato imediatamente a seguir na lista de graduação final de concurso previamente efectuado.

A ilegalidade da nomeação e os actores formais dessa ilegalidade

  1. Nos termos do artigo 180.º, n.º 2 da Constituição, os Juízes Conselheiros do Tribunal Supremo são nomeados pelo Presidente da República, sob proposta do Conselho Superior da Magistratura Judicial, após concurso curricular de entre Magistrados Judiciais, Magistrados do Ministério Público e juristas de mérito, nos termos que a lei determinar.
  2. Quer isto dizer que a responsabilidade da nomeação de um Juiz do Tribunal Supremo é comum, isto é, trata-se de uma competência conjunta de dois órgãos constitucionais: o Presidente da República (PR) e o Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ). Nenhum tem o poder de, per se, designar o Juiz. Tem de haver o devido procedimento e têm de ser cumpridas as formalidades e os requisitos legais e morais. Nesse procedimento, o CSMJ deve seleccionar alguém que cumpra os requisitos legais, morais, de ética e probidade pública. Por sua vez, o PR, com base na avaliação da legalidade e idoneidade, não deve nomear e dar posse a alguém condenado e com processos em curso nos tribunais.
  3. Consequentemente, como garante da Constituição e da Lei (artigo 108.º, n.º 5 da Constituição), não deve caucionar actos feridos de ilegalidade. O PR deve sempre proceder, nos seus actos, à verificação da conformidade constitucional e legal, mesmo quando recebe indicações de outro órgão.
  4. É esta conformidade legal que não existe na referida nomeação. Ao indicarem e nomearem Carlos Alberto Cavuquila, o CSMJ e o PR não respeitaram o Estatuto dos Magistrados Judiciais.

A violação do artigo n.º 40.º, 1 c) do Estatuto dos Magistrados Judiciais

  1. O artigo 40.º, 1, c) do Estatuto dos Magistrados Judiciais é claro quando determina que é requisito para o ingresso na Magistratura Judicial a idoneidade moral e cívica.

Obviamente, esta norma aplica-se a todos os Magistrados Judiciais.

  1. Nestes termos, para ser nomeado pelo PR como Juiz Conselheiro do Tribunal Supremo, Carlos Cavuquila deveria ter idoneidade moral e cívica.
  2. A idoneidade moral e cívica legalmente consagrada está também consignada nos princípios de Bangalore para a conduta judicial (a base universal para o comportamento dos juízes). Para além da competência técnica, a idoneidade e a aparência de integridade são essenciais para o desempenho de todas as actividades de um juiz.
  3. O teste da falta de idoneidade consiste em avaliar se a conduta compromete a capacidade de o juiz cumprir as suas responsabilidades judiciais com integridade, imparcialidade, independência e competência, ou se é provável que crie – na mente de um observador razoável – uma percepção de que a sua capacidade de cumprir as responsabilidades judiciais será dessa forma prejudicada.
  4. Torna-se evidente que Carlos Alberto Cavuquila não passa este teste de idoneidade cívica e moral perante o público ou perante um observador razoável.
  5. Carlos Alberto Cavuquila confronta-se com dois processos judiciais por descaminho de verbas públicas, tendo já sido condenado num deles, naturalmente cria uma percepção pública de falta de idoneidade. Tal é confirmado pela posição assumida pelo Plenário do Tribunal de Contas, a 8 de Maio de 2023, que considerou Cavuquila inadequado para fazer parte de um júri de selecção de juízes, por ter sido condenado por esse tribunal a reintegrar 29 milhões de kwanzas nos cofres do Estado, cuja execução se encontra pendente no Tribunal Provincial de Luanda. Um segundo processo, a correr trâmites na 2.ª Câmara do Tribunal de Contas, responsabiliza Cavuquila pelo descaminho de um total de 1,519 mil milhões de kwanzas, indicando que o arguido deve devolver esse dinheiro ao Estado e enfrentar processos sancionatórios.
  6. Não existem dúvidas de que Carlos Alberto Cavuquila não reúne os requisitos legais, morais e éticos para ser juiz, pelo que a sua nomeação é ilegal.

Função da Procuradoria-Geral da República

  1.  É função constitucional da Procuradoria-Geral da República e do Ministério Público defender a legalidade democrática (artigo 186.º da Constituição). Portanto, perante a violação referida num caso de relevância constitucional elevada, é dever da Procuradoria agir pelos meios jurisdicionais adequados e promover a anulação de actos ilegais.
  2. É nesse âmbito que apresentamos o presente requerimento, que constitui uma participação cívica e democrática. Compete à Procuradoria-Geral da República a escolha do mecanismo adequado para proceder à dita anulação.

Conclusões

  1. A nomeação de Carlos Alberto Cavuquila é ilegal, pois não cumpre com o requisito do artigo 40.º, n.º 1 c) do Estatuto dos Magistrados Judiciais, que exige idoneidade cívica e moral.
  2. A referida nomeação deve ser anulada por vício de ilegalidade.
  3. Compete à Procuradoria-Geral da República, enquanto defensora constitucional de legalidade democrática, promover as medidas jurisdicionais efectivas que conduzam à reposição da legalidade e à responsabilização dos autores supra pelos actos atentatórios contra o Estado Democrático e de Direito.

É dentro da legalidade e da operação eficiente e coordenada das magistraturas que reside o futuro do Estado de Direito e da Democracia em Angola.

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