Acórdão São Vicente e o Neocolonialismo Jurídico

Comecemos com um aplauso. A nova presidente do Tribunal Constitucional, Laurinda Cardoso, tem trilhado caminho no sentido daquilo que definimos no passado como a jurisprudência da contenção, retirando o tribunal do palco público e da exagerada contenda política.

Em simultâneo, parece haver um reforço do profissionalismo, traduzido em pequenos exemplos como a nova revista científica da corte, Guardiã, que, contudo, talvez peque por ter demasiadas luminárias do passado, quando o direito constitucional angolano necessita de um claro rejuvenescimento. Também é de realçar a forma mais acessível como são publicados os acórdãos.

É sobre o acórdão n.º 825/2023, referente a Carlos São Vicente que se debruça este artigo.

No passado dia 5 de Julho, nove juízes conselheiros, que compunham o Plenário do Tribunal, aprovaram por unanimidade sem votos de vencido o acórdão que indeferiu o recurso que, por alegadamente terem sido ofendidos os princípios, direitos e garantias constitucionais no seu processo, foi interposto por Carlos São Vicente. Com esta decisão, a justiça angolana disse a última palavra sobre o caso, mantendo a sentença de prisão do genro de Agostinho Neto. Última palavra não quer dizer que não existam mais possibilidades de recursos ou reclamações, mas agora apenas sobre aspectos laterais ou processuais.

Assim, Carlos São Vicente é a segunda figura relevante a ter o processo judicial concluído em Angola no âmbito do chamado combate à corrupção. Lembremos que o primeiro foi Augusto Tomás, antigo ministro das Finanças e dos Transportes, que neste momento já se encontra em liberdade. Aliás, notícias não confirmadas dão conta que São Vicente também já estará em liberdade por razões médicas.  

Temos sempre defendido que, em termos de equidade, estas condenações são substantivamente injustas, pois os casos públicos e notórios de corrupção foram muito mais gravosos e envolvem outras pessoas além de Augusto Tomás e Carlos São Vicente. Teria sido possível fazer mais e melhor – agora será tarde.

Debrucemo-nos sobre o acórdão em concreto. De uma forma geral, o acórdão é escorreito e apresenta as suas soluções de forma linear e com competência técnica, iniciando aliás a sua deliberação com uma forte crítica aos advogados de São Vicente, por escreverem em demasia de forma repetitiva e circular. É fundamental que a justiça angolana não caia na armadilha em que já caiu a justiça portuguesa: o excessivo tamanho das peças processuais, acusações, defesas, decisões, que não raro ocupam mais de mil páginas, esvaziando qualquer possibilidade real de justiça.

Todavia, este é o único “pecado português” (o tamanho absurdo das peças judiciais) que se conseguiu evitar; em contrapartida, nota-se neste acórdão uma forte tendência do Tribunal Constitucional para o “portuguesismo jurisprudencial”, que, por um lado, representa um neocolonialismo jurídico desnecessário e, por outro, atendendo às suas características demasiado formalistas, não garante a protecção cabal dos direitos fundamentais, uma vez que Portugal tem uma aproximação ao direito baseada em fórmulas vazias, sem atenção aos conteúdos materiais e com temor de aplicar os princípios constitucionais.

O acórdão de São Vicente representa esse “portuguesismo jurisprudencial” na sua plenitude.

Comecemos pela doutrina que é citada para sustentar a decisão. Escolhem-se apenas autores portugueses – com a excepção de Vasco Grandão Ramos. No entanto, os autores portugueses não avançam qualquer inovação doutrinal, apenas dizem o óbvio. Assim, mencionam-se Jorge Miranda e Rui Medeiros, em anotação ao artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (e não da angolana), a concretizar o que significa o acesso ao direito. Não há nenhum autor angolano que diga o mesmo? É que Miranda e Medeiros não afirmam nada de novo, apenas se limitam a especificar com exemplos aquilo em que se traduz o acesso ao direito.

Mais à frente, vão buscar o penalista Germano Marques da Silva para definir o que é o princípio do acusatório e Figueiredo Dias sobre a presunção de inocência. Nenhum destes ilustres professores avança com nenhuma doutrina especial nestes casos, limitando-se a escrever o elementar. Por isso, a pergunta repete-se: não existe nenhum autor angolano que defina o que é o princípio do acusatório ou a presunção de inocência?

Se a doutrina expressa no acórdão é pobre e não tem relevância especial para a decisão da causa, o que tem é a interpretação formalista que se faz dos princípios constitucionais, seguindo a prática portuguesa.

O Tribunal Constitucional angolano não explora as potencialidades dos princípios constitucionais invocados, refugiando-se sempre num formalismo excessivo e não pesando devidamente a argumentação aduzida. Há falta de coragem jurídica para aplicar princípios constitucionais em defesa de São Vicente, como em geral acontece em decisões análogas em Portugal.

Vejamos em relação ao primeiro tema levantado na decisão, a violação do “Princípio do Acesso ao Direito e Tutela Jurisdicional Efetiva” (vê-se o “portuguesismo” desta decisão até no facto de se escrever “Efetiva” e não “Efectiva”, como seria no português angolano). O Tribunal considera que, pelo facto de ter passado procuração a vários advogados e lhe ter sido retirada a possibilidade de ser representado por um deles, mas não dos outros, a protecção de São Vicente não ficaria em causa. Bem deveria saber o Tribunal que a maior parte das vezes um arguido escolhe um advogado concreto, e é prática dos escritórios de advogados colocarem vários nomes para assegurar variadas diligências, mas é num e só num que o arguido confia e é desse que espera a liderança do processo de defesa. Retirando-o, fica esvaziada, de facto, a defesa. Essa inquirição o Tribunal não fez e deveria ter feito.

Um segundo tema, entre outros, liga-se à teorização que o Tribunal realiza para se considerar Carlos São Vicente punível por peculato. O peculato é um tipo criminal vocacionado para os funcionários públicos. Tanto quanto se percebe, São Vicente não actuou como funcionário público. No caso concreto, não se entende bem o raciocínio do Tribunal, sobretudo porque parece invocar uma lei posterior aos factos, a Lei n.º 5/20, de 16 de Janeiro – Lei do Branqueamento de Capitais e Financiamento ao Terrorismo, para enquadrar São Vicente nesse crime, embora antes diga que São Vicente fora sempre funcionário público, mas também afirme que se havia desvinculado. E tanto quanto é público, São Vicente actuou como presidente do Conselho de Administração de uma sociedade comercial. A AAA S.A. era uma sociedade privada detida por São Vicente. Como não conhecemos os autos na sua plenitude, não queremos fazer afirmações definitivas, mas o tema parece obscuro na decisão do Tribunal Constitucional.

Em conclusão, o acórdão do Tribunal Constitucional que negou razão a Carlos São Vicente está bem elaborado, mas padece de um “portuguesismo jurisprudencial” que minimiza a justiça angolana enquanto justiça de um país independente, e reduz a protecção constitucional dos direitos fundamentais.

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