O Futuro de Angola nas Mãos dos Angolanos
São as nossas acções de ontem e de hoje que determinam o futuro. Tendo em conta essas acções, quais são as perspectivas realistas para o futuro de Angola?
Há quatro pilares estruturantes em que assenta a construção do futuro: uma liderança que promova e una o país e os cidadãos em torno do Estado-Nação; uma efectiva estruturação do Estado de Direito; uma economia próspera para todos; e uma matriz de educação, saúde e justiça que sirva todos os cidadãos, sem deixar ninguém para trás.
Em 2017, com a mudança de presidente, após 38 anos de José Eduardo dos Santos, os angolanos sonharam, mais uma vez, com a possibilidade de uma Angola melhor.
Com João Lourenço no poder, augurava-se, como primeiro passo de mudança e de liderança, a reforma do Estado e a implementação de um novo modelo de governação, assente na separação de poderes. Em termos práticos, isso significa tratar os cofres do Estado enquanto tal e não como fortunas ou reservas pessoais dos titulares dos cargos públicos. Significa também dispor de instituições do Estado sólidas e robustas e, sobretudo, dispor de um poder judicial autónomo, capaz de garantir os freios e contrapesos no governo e a justiça na sociedade.
A realidade, porém, tem vindo a desacreditar as promessas de início de mandato de Lourenço e a gorar as expectativas da população. Sobretudo no último ano, os alicerces necessários à edificação dos referidos quatro pilares estruturantes vêm sendo sistematicamente destruídos. E os angolanos, depois de tanto sonharem, entraram agora em desespero.
É portanto evidente que não podemos falar do futuro sem antes avaliarmos o estado actual do país.
A desestruturação política, educativa e moral da sociedade gerou uma mentalidade em que a figura do bom pai de família não é distinta da do gatuno. Não há separação entre Estado e governo, dever e obrigação, individual e colectivo, o que elimina qualquer diferença entre os cofres do Estado e os bolsos privados dos seus gestores. A não criação de um sistema de valores colectivo e de uma moral democrática implicou que a sociedade não assuma a sua agência, e em vez disso procure sempre um messias, que na verdade só existe na bíblia.
A questão é simples: tem de ser sempre a sociedade a autodefinir-se e não deixar que uma única pessoa determine o seu futuro. Ao não cumprir o seu papel enquanto promotor desse processo social colectivo, João Lourenço abriu as portas à actual crise de liderança. Só assim foi possível termos um presidente que, em cinco anos, passou de suposto Messias a aparente Judas.
João Lourenço iniciou a sua presidência com uma certa abertura política, anunciando reformas económicas a favor do mercado livre e o famoso combate à corrupção – um caminho de que se perdeu completamente. Para começar, o presidente não soube, ou não quis, reformar-se a si mesmo, processo obrigatório tendo em conta que ele foi uma criação directa do velho regime de José Eduardo dos Santos. Em vez disso, Lourenço tentou fazer tudo usando o mesmo modus operandi do seu antecessor, de forma mais crua e persecutória e com o pessoal de segunda linha do antigo presidente.
Basta olharmos para a detenção, no fim-de-semana passado, de quatro jovens activistas no Huambo, sob o esfarrapado argumento de “incitação à rebelião”, retomando o guião estafado do Processo 15+2, que acabou por tornar óbvio o estado ridículo a que chegara a figura do então chefe de Estado. Os jovens do Huambo nem sequer promoveram uma manifestação ou qualquer outra actividade cívica ou política. Limitaram-se a observar o luto pela morte dos seis cidadãos nas manifestações de 5 de Junho, durante as quais se protestou contra o aumento, em mais de 80 por cento, do preço da gasolina.
O actual governo angolano, tal como nas longas décadas do regime de José Eduardo, continua a não se reger pelo princípio básico de qualquer governo democrático: servir o povo. E essa incapacidade – ou será melhor dizer “desinteresse”? – de servir o povo continua a revelar-se de forma inclemente. O presidente vê-se cada vez mais dependente do uso da força e da arrogância para manter o poder, desvirtuando o mandato que lhe foi conferido e as suas próprias promessas de mudança.
O desmantelamento do Estado de Direito
Essa desvirtuação faz-se sentir em especial no desmantelamento do incipiente Estado de Direito. A 16 de Junho passado, o presidente da República nomeou para juiz conselheiro do Tribunal Supremo um antigo administrador municipal, Carlos Alberto Cavuquila, condenado pelo Tribunal de Contas por descaminho de fundos públicos.
A 8 de Maio passado, os juízes do Plenário do Tribunal de Contas recusaram a designação de Carlos Alberto Cavuquila como membro do júri que escolheria os futuros juízes do referido tribunal. De forma unânime, revelaram que Cavuquila foi condenado por este tribunal a reintegrar 29 milhões de kwanzas nos cofres do Estado, cuja execução se encontra pendente no Tribunal Provincial de Luanda. Um segundo processo, a correr trâmites na 2.ª Câmara do Tribunal de Contas, responsabiliza Cavuquila pelo descaminho de um total de 1,519 mil milhões de kwanzas, indicando que o arguido deve devolver esse dinheiro ao Estado e enfrentar processos sancionatórios.
Na altura, escrevemos no Maka Angola que “nunca, nem na pior das repúblicas das bananas, se pode designar alguém que está a ser julgado por um tribunal para escolher juízes para este mesmo tribunal”. Mais se dirá que nunca um presidente da República pode escolher um condenado por desvio de dinheiros do Estado para juiz do principal tribunal deste Estado. Ou João Lourenço perdeu a cabeça, ou tem uma agenda de hostilidade contra os angolanos, fazendo das instituições do Estado meros expedientes pessoais.
O caso de Cavuquila vem na sequência e pela mão do presidente do Tribunal Supremo, Joel Leonardo, que representa o Rubicão de João Lourenço. Explicamos. O chefe de Estado mantém Joel Leonardo como presidente do Tribunal Supremo, sem tomar qualquer medida face ao volume de denúncias de corrupção, de que apresentámos algumas queixas à Procuradoria-Geral da República, nunca obtendo resposta. Com a cobertura dos comportamentos prepotentes de Joel Leonardo, João Lourenço atravessou os limites do Estado de Direito e transformou-se ele próprio numa ameaça. Tal como César, ao passar o rio Rubicão, violou as leis básicas de Roma e se tornou uma ameaça à república, o mesmo faz João Lourenço ao proteger Joel Leonardo.
No seu mais recente discurso, a 19 de Junho, ao conferir posse aos novos juízes conselheiros do Tribunal de Contas, o presidente da República confirmou, de forma cristalina, os maiores receios públicos sobre a sua interferência e controlo directo do poder judicial:
“Vejam em que situações é que o visto do Tribunal de Contas deve ser um visto prévio, mas haverá com certeza casos em que, se calhar, não haverá necessidade do visto ser prévio. Ele deve ser emitido na mesma, mas eu acredito que não em todas as situações haverá necessidade de o visto ser prévio.”
É assim que Lourenço encara os contratos públicos e o papel de supervisão que o Tribunal de Contas deve desempenhar. Com isto parece pretender ignorar que os contratos e as contas do Estado, sujeitos à fiscalização do Tribunal de Contas, não dependem da vontade do presidente nem dos juízes, mas sim do que está expresso na lei. A Presidência da República revela assim que não dispõe de um filtro jurídico adequado, o que deixa o país sem segurança jurídica.
Economia próspera para todos
Sem segurança jurídica, é impossível desenvolver a economia. Desde os primórdios da independência, a economia angolana é centralizada. Durante o período marxista-leninista, os factores de produção eram unilaterais, assentes no controlo total do partido-Estado. Com o multipartidarismo, apesar de se verificar alguma abertura ao sector privado, a ganância e o enriquecimento ilícito levaram a que o Estado mantivesse a economia totalmente controlada, por causa dos interesses económicos particulares dos principais dirigentes do país. Este é o figurino actual. Não há liberdade económica efectiva, traduzida na possibilidade de qualquer pessoa entrar e sair dos mercados quando bem entende, fundar empresas, obter créditos e todas as actividades ligadas a uma economia livre. Os factores mencionados – insegurança jurídica associada a centralização, controlo do Estado e enriquecimento ilícito – são totalmente inibidores da criação de valor acrescentado: sem iniciativa empresarial privada, não se gera riqueza para o país, não se potenciam as exportações e não se criam mais postos de trabalho.
Não tendo sido aproveitada a curta janela de oportunidade com a subida do preço do petróleo, os velhos problemas da economia voltam a ameaçar: o desemprego, a inflação, a falta de diversificação da economia, sem que o poder político tenha nenhuma solução para travar a espiral de miséria dos angolanos.
Educação qualitativa
O futuro de qualquer país depende, sobretudo, da forma como educa os seus cidadãos. Em Angola temos estado sempre nos lugares inferiores dos Índices de Capital Humano. O próprio governo, na sua Agenda 2050, reconhece esse facto ao escrever que o Índice de Capital Humano de Angola é “dos mais baixos do mundo” e que o país se encontra no fim da classificação ao nível da África Subsariana e da SADC. Este baixo índice mundial tem implicações óbvias na economia, atirando-a para níveis de produtividade extremamente baixos e decrescentes, o que também é confirmado pelo diagnóstico da mesma Agenda 2050. Como se sabe, a produtividade é o factor-chave para qualquer crescimento económico sustentado. Um país sem produtividade está condenado à pobreza. Neste contexto, a educação tem a maior importância e, como tal, deve assumir um papel fundamental.
Ora, nas suas mais de 400 páginas, a Agenda 2050 não reconhece um elemento-chave do sistema de educação, cuja negligência tem contribuído para a sua desestruturação desde a independência: a instrução primária. As escolas primárias nunca tiveram orçamento próprio para as suas necessidades mais elementares. A situação mantém-se e não se prevêem modificações. A educação primária é a base de tudo o resto. Como se pode falar em educação qualitativa quando as escolas não têm dinheiro para comprar giz, material de consumo corrente, manutenção e segurança das escolas? Sem orçamento, boa parte das escolas nem sequer pode comprar água, porque muitas não têm água da rede pública, nomeadamente para a limpeza das casas de banho, essencial para que ao menos as crianças passem a maior parte do seu dia num ambiente higiénico. Perante este cenário, as crianças aprendem o quê?
A questão do orçamento para as escolas é mais vincada numa das zonas simultaneamente mais ricas e mais pobres do país, em termos de extracção de riqueza e de condição de vida das populações, respectivamente: a Lunda-Norte. Esta província tem um plano curricular especial de três turnos diários de menos de três horas para os alunos do ensino primário, devido ao número limitado de salas de aulas e de professores. A carga horária em vigor torna impossível o processo efectivo de ensino e aprendizagem, ao arrepio das próprias regras do Ministério da Educação, que estabelece no plano curricular nacional um período mínimo de ensino de cinco horas lectivas diárias.
A decadência do ensino acentua o ciclo de pobreza numa região que, ironicamente, é das mais ricas em recursos naturais, sobretudo diamantes. Há uma explosão demográfica, mas não será dada nenhuma formação básica aos jovens e, simultaneamente, as novas gerações vão perdendo cada vez mais as aptidões tradicionais de agricultura, caça e outras que garantiam o modo de vida sustentável dos avós e antepassados.
Conclusões
Angola continua adiada, por falta de uma transição real que devolva o poder aos cidadãos. Entendemos como devolução do poder a garantia inequívoca das liberdades e dos direitos dos cidadãos.
Essa garantia passa pela afirmação da supremacia das ideias e propostas destinadas a alcançar o bem comum. Só assim é concitar o envolvimento dos cidadãos, para que se empenhem na construção de novas lideranças em todos as áreas do saber, da política, da economia e da sociedade em geral.
Só lideranças comprometidas com o saber e o bem comum serão capazes de promover espaços de ideias e de libertar os talentos e as iniciativas de milhares de cidadãos angolanos para a construção do Estado de Direito.
* Comunicação proferida no III Congresso Internacional de Angolanística, subordinado ao tema “O que é novo em Angola?”.