Balbúrdia na Justiça

A balbúrdia era esperada a partir do momento em que João Lourenço escolheu fazer o seu combate contra a corrupção através dos meios judiciais ordinários. Foi escolher um subsistema corrupto e conivente para lutar contra si mesmo. Naturalmente, haveria de dar mau resultado, como está de facto a dar. A justiça ordinária angolana não estava preparada para combater a corrupção, razão pela qual deveria ter sido estabelecida uma estrutura autónoma, focada e isolada. Não o foi, e isso constituiu o erro trágico da estratégia do combate à corrupção do presidente da República.

As buscas a Joel Leonardo

Os últimos dias foram plenos de intriga judicial, assumindo especial relevo a tentativa, por parte da Procuradoria-Geral da República (PGR), de efectuar buscas e apreensões aos órgãos judiciais, Tribunal Supremo e Conselho Superior da Magistratura, tendo como suspeito principal o presidente do Tribunal Supremo, Joel Leonardo.

Haverá um processo-crime a correr na PGR visando a investigação de vários actos ligados a Joel Leonardo, designadamente a contratação de centenas ou mesmo milhares de funcionários, geralmente filhos ou familiares dele próprio ou de pessoas próximas, para os tribunais, sem qualquer enquadramento ou fundamento legal; a entrega a terceiros (familiares e amigos) de apartamentos destinados a juízes; a gestão descontrolada do cofre do tribunal e a eventual “venda” de sentenças.

No seguimento desse processo, a PGR decidiu fazer buscas aos locais de trabalho de Joel (gabinetes no Tribunal Supremo e Conselho Superior da Magistratura Judicial – CSMJ). No local, foi recusado o acesso aos magistrados da PGR, com o argumento que as buscas seriam ilegais. Depois disso, houve uma reunião do CSMJ, generosamente filmada, que originou um comunicado amplamente difundido na imprensa, vergastando a PGR. Temos, portanto, o presidente do Tribunal Supremo suspeito de ter cometido crimes, buscas e apreensões goradas, o CSMJ a emitir comunicados vigorosos contra a PGR.

Em resumo, o topo do poder judicial em conflito aberto e público com a PGR. Será possível pior?

Começa por ser interessante constatar o que a lei diz sobre a disputa que opõe o CSMJ à PGR acerca das supostas buscas e apreensões. O CSMJ alega que as buscas aos órgãos de justiça tentadas pela PGR são ilegais e nulas e, por isso, estiveram bem as pessoas que se lhes opuseram e as impediram.

A questão é saber onde se encontra o fundamento legal para essa afirmação.

Geralmente, tal estaria no Estatuto dos Magistrados Judiciais. Por exemplo, em Portugal (fonte da maior parte da legislação angolana, muitas vezes em desavergonhado copy-paste), o Estatuto dos Magistrados Judiciais, no seu artigo 20.º, com a epígrafe “Garantias de processo penal”, estabelece no seu n.º 5 que “A busca no domicílio pessoal ou profissional de qualquer magistrado judicial é, sob pena de nulidade, presidida pelo magistrado judicial competente, o qual avisa previamente o Conselho Superior da Magistratura, para que um membro delegado pelo Conselho possa estar presente”.

Note-se que não se exige autorização do CSM português, mas sim prévio aviso, e também a presença do magistrado judicial competente no caso. Nada mais. As buscas e apreensões seguem o regime comum, com estas duas pequenas precisões.

Contudo, não encontrámos norma semelhante no Estatuto dos Magistrados Judiciais angolanos. Vislumbramos uma norma sobre imunidades (artigo 31.º), mas que apenas diz respeito à prisão, e a existência de foro próprio em causas criminais (artigo 33.º, n.º 1, c). Não se deparou com qualquer referência a buscas e apreensões, apenas se deduzindo que o seu ordenante deve respeitar o foro próprio do magistrado judicial. Isto significará, para o caso de um juiz conselheiro, que o processo tem de ser instruído a nível semelhante na PGR e, para o caso de um presidente do Tribunal Supremo, que deverá ser o PGR em pessoa a presidir à investigação. Mas não mais do que isso.

Por sua vez, na restante legislação – Lei do Conselho Superior da Magistratura, Código Processo Penal –, não encontrámos o fundamento para a oposição do CSMJ às buscas. Admite-se que possa existir, mas, a bem da transparência e da informação consistente, o CSMJ deveria enunciar os fundamentos legais da sua posição quando a torna pública. Não basta dizer que é ilegal.

No entanto, mesmo que a busca ordenada pela PGR não respeitasse as regras legais na sua totalidade, tal não confere um direito de resistência física ou recusa ao CSMJ ou a quem quer que seja, impedindo as buscas. O remédio para uma busca ilegal é o pedido de nulidade através de um recurso ao tribunal. O instrumento de reacção é legal e jurisdicional.

Torna-se risível e preocupante ver que o CSMJ não respeita o sistema de tribunais nem o direito e se arroga o direito de aplicar o seu ponto de vista através da sua força.

Pensemos num traficante de droga que fosse objecto de um mandado de busca e apreensão. Com o exemplo dado pelo CSMJ, também ele poderia alegar que o mandado de busca era nulo, recusar a entrada das autoridades e, entretanto, deitar fora a droga que tinha em casa.

O CSMJ não deve ter percebido que a sua actuação coloca em causa todo o ordenamento legal angolano – torna-o uma farsa.

Portanto, havendo ou não lei especial para as buscas e apreensões relativas ao presidente do Tribunal Supremo, a reacção nunca pode ser o impedimento físico ou o uso da força, mas sim o recurso ao tribunal para requerer a nulidade das mesmas. Aliás, àqueles que impediram as buscas, haverá que aplicar o artigo 218.º do Código do Processo Penal, que estabelece que no “caso de, em qualquer lugar onde deva ser realizada a busca, não ser autorizada a entrada, a entidade que àquela presidir deve adoptar as providências necessárias para que ela se efectue, podendo, se isso for julgado aconselhável, requisitar a força pública para garantir o bom êxito da diligência, incorrendo os opositores na pena de desobediência”.

O presidente da república e o ministro da Justiça: que fazem?

No meio disto, obviamente, por força da Constituição, fica na mira o presidente da República, pois é debaixo do seu mandato que a balbúrdia ocorre. Muitos defendem que, a bem da separação de poderes, o presidente da República nada tem a fazer, devendo remeter-se à pura inacção. Como referimos em anterior artigo, não é essa a nossa opinião.

Entendemos que há um dever político-constitucional de intervenção moderadora, com vista a assegurar o bom funcionamento das instituições. Aliás, o presidente exerceu esse magistério, e bem, de forma transparente e contida, no caso da presidente do Tribunal de Contas, não se percebendo porque não o faz nesta situação que está descontrolada. Se, porventura, tem alguma razão de Estado, que desconhecemos, para tal acanhamento, pergunta-se onde anda o ministro da Justiça? O ministro da Justiça já deveria há muito ter prevenido e acautelado estas situações. De contrário, para que servem os Ministros?

Agitações na PGR

Note-se que, pelo meio, a situação na PGR também fervilha. Não esqueçamos a farsa à volta da recondução de Pitta Groz para um segundo mandato, farsa que, inexplicavelmente, persiste, e o silêncio sepulcral que se vive desde o fim da suposta imunidade de Manuel Vicente (27 de Setembro de 2022), que é o teste internacional à boa administração da justiça em Angola.

Dentro do Ministério Público, surgem várias acusações de comportamentos irregulares por parte do PGR. Como se verá, a sua gravidade não resulta dos factos em si, mas do seu significado simbólico.

Várias alegações têm surgido sobre nomeações impróprias ou preenchimentos inadequados de órgãos, enquanto procurador-geral da República e enquanto presidente do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP). Pitta Groz terá indicado os coordenadores das Regiões Judiciárias Norte, Centro e Leste, os subprocuradores-gerais da República, Neto Joaquim, Carlos Santos e Astrogildo Culolo, enquanto coordenadores sem pasta. Tal não será possível, de acordo com a Lei n.º 22/12 de 14 de Agosto, a qual não contempla a indicação de coordenadores de regiões judiciárias. Trata-se apenas de um projecto da futura lei da Procuradoria-Geral da República. Ainda mais grave, os mesmos foram indicados estando numa categoria inferior à de procurador-geral-adjunto da República, causando assim disparidades relativamente ao coordenador da Região de Luanda, Bengo e Cabinda, João Coelho, procurador-geral-adjunto da República.

Outra situação irregular não menos importante. Existia uma categoria, a que está abaixo do procurador da República, que é a de procurador-adjunto. Actualmente, Já não existem procuradores-adjuntos. Licenciam-se e tornam-se, ganhando a nível salarial, procuradores da República; aliás, para não variar, imitando idêntica modificação em Portugal. No entanto, foram eleitos os procuradores Quilino Jorge e Martelo nessa categoria inexistente. Assim, não representam ninguém. Já não existem procuradores nessa categoria. Há também a situação de uma substituição administrativa de um vogal do CSMP. Como se vê, este só pode ser o tempo da reforma radical da justiça. Nem mais, nem menos. As senhoras e os senhores deputados da maioria e o senhor presidente da República têm de agir. Este não é um momento de hesitações.

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